segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Estranhos no castelo - 1º capítulo


CRISTINA EMÍLIA

















ESTRANHOS NO CASTELO


























Para minha Mãe - que nunca deixou de me amar e apoiar.

Ao meu amado irmão caçula, companheiro de sempre.

 Aos meninos e meninas que passaram por mim com o propósito de aprender, mas que na verdade muito me ensinaram.

 Para minhas amigas-irmãs Irleide de Souza e Luzia Romero, presentes divinos.









































                                                  A renúncia
           
                                                                



            É véspera de Natal e recordo-me de outros já idos, nenhum em especial. Quando em casa dos pais, somente eu e minha mãe, a sopa fumegando no caldeirão, o fogo aceso dentro de nossa choupana por ser a estação fria. Revejo nossas sombras dançando nas paredes enegrecidas de fumaça. Uma na companhia da outra, a esperar o Divino Menino, já que o pai preferia a companhia dos amigos camponeses e da cerveja. Estaria a mãe sozinha agora? Por que não a chamei para cear comigo esta noite? Ainda a mágoa.  Vivia o irmão ainda? Há anos a sua partida, movida pelo incontido desejo de correr o mundo. Nos últimos anos, ali naquele castelo imenso e gélido, também frios os natais. Não porque indiferentes os convidados, mas porque me fechara ante as mulheres de seda e os homens de metal; silenciara quando entre os orgulhosos e seus relatos de guerra; abstivera-me dos alimentos servidos em rica prataria; recolhera-me diante do farfalhar dos vestidos e o brilho das espadas. Outro natal e a mesa a mesma dos de outrora, fartamente servida: carne de porco e de cabrito assadas, peixes salgados e defumados, pães, doces, molhos, vinhos. Porém outros os comensais, porque prometera a mim mesma esperar o Salvador acompanhada de meus iguais. Meu marido ausente, eu a soberana do castelo. Os criados, animados pelo banquete e pelas canções e representações dos trovadores, comiam e conversavam animadamente, ignaros ainda dos presentes que lhes reservara: lãs, tecidos e agulhas para as mulheres; facas, punhais e mantos para os homens. Sinto-me em família agora. Mas eis que doze homens invadem o salão, interrompendo a ceia. Quem os lidera é o barão, primo do meu marido. Mal consigo disfarçar minha insatisfação: não o esperava, senhor barão. Aparentando indignação, ele diz: que recepção fria, minha prima! Não quis deixá-la sozinha numa noite tão especial. Vim para fazer-lhe companhia e é assim que me recebe? De que outro modo eu poderia recebê-lo, se os guardas lhe permitiram a entrada sem que eu houvesse sido consultada? Não me agrada recebê-lo na ausência do meu marido. Ele ri: ora, prima, que cerimônia é essa? Sou da família e se bem me lembro, o conde, seu marido, costumava deixar a ponte levadiça abaixada. Isso em tempos de paz - argumento – e se ele parte com seus cavaleiros em auxílio do rei é porque estamos em tempos de guerra. Não nos convida a cear, ele diz, ignorando-me. Temerosos, os criados retiram-se do salão, permanecendo apenas os da cozinha, também incumbidos de servir. Penso em pedir que permaneçam em seus lugares, mas bem sei que manter juntos nobreza e criadagem pode me trazer problemas. O barão e seus homens sentam-se e são servidos de vinho. Ceando no salão com os criados, prima? – o barão pergunta – venho em muito boa hora. Parece-me que a ausência do marido não lhe fez bem. Temo por sua saúde e também pela propriedade.  Por que deixar que uma mulher tão frágil se sacrifique de tal modo, carregando o pesado fardo da administração de tamanha extensão de terras e servos? E arremata: como poderia eu permitir que meu primo perca seus bens por tê-los deixado sob a responsabilidade da esposa? Sendo eu da família, é justo que os socorra neste momento de infortúnio. E mirando-me de alto a baixo – ainda mais agora que não anda bem, pois trata como iguais aos que devem nos servir! Não posso mais esperar pela volta do conde, já que dele e de seus cavaleiros não se tem notícias há dois invernos. Sorri e se volta para o prato que lhe é servido. Morde um pedaço de carne, satisfeito. Comenta algo com um de seus amigos. Minha cabeça rodopia. Observo os traços do seu rosto, iluminado pela luz dos círios, os mesmos traços do senhor meu marido, somente o olhar, cortante e frio, destoa. São do mesmo sangue e poderiam ter feito tanto juntos, penso. Mas o barão não deseja alianças. Sempre invejara o conde e agora agarrava a chance de se apropriar do que não lhe pertencia. Sei que não devo permitir, porque prometi ao senhor cuidar de tudo até que voltasse. Mas como impedi-lo se ele agora dentro do castelo e pequeno o número de soldados a meu dispor? Procuro com o olhar o capitão da guarda e o encontro a um canto do salão, calado. Apenas um homem contra doze. O que podíamos nós? Até ali me saíra bem da incumbência recebida. Assim como o senhor meu marido, fazia visitas diárias à aldeia e aos campos cultivados, para manter-me informada e para mostrar aos servos que, sob meu comando, tudo transcorreria como se na presença do senhor. Os primeiros olhares que recebi não transmitiram muita confiança, mas me vali do apoio deste mesmo capitão da guarda, homem considerado entre os camponeses, que me acena com a cabeça enquanto sai discretamente da sala.   Esforcei-me por ser firme e também generosa, tratando a todos com respeito e dignidade. E fui ganhando o respeito dos que me serviam que se sabiam iguais a mim. E talvez por isso esforçaram-se em corresponder à atmosfera estabelecida. Deve saber que tudo está como meu marido deixou e até melhor, disse-lhe, refeita do temor que me invadira, os camponeses produzem, a criação de animais prospera, é boa a produção de vinho e as mulheres fiam. Não há sede, não há fome, não há frio. E ele, abandonando de vez a falsa amabilidade, retruca: vá queixar-se ao rei, minha senhora. Estou aqui para cuidar dos interesses que também são meus. Minha tia morta, meu primo desaparecido, quiçá morto, cuidarei eu de tudo até que retorne, se retornar. E conclui: quanto à senhora, que infortúnio não ter tido filhos com que se ocupar! Mas creio que se contentará em passear no jardim, bordar, ouvir canções dos trovadores, ocupar-se dos seus vestidos, ater-se ao que cabe a uma mulher. Sabe muito bem que não posso queixar-me ao rei – respondo, indignada - pois que ele está fora combatendo. É graças à cobiça dele que meu marido e seus cavaleiros engrossam suas fileiras e me vejo sozinha agora - levanto-me, decidida - neste castelo não são bem-vindos os usurpadores. Peço que saia de minha propriedade!  Sua propriedade? Ele r, sarcástico, esqueceu quem é? Uma simples camponesa! Tem sorte de eu não a expulsar!  Mas não o farei, porque estou sozinho e você também está e acredito que formamos um belo par, diz-me o homem, estendendo-me a mão maliciosa: saiba que eu a quero, diz. Isso não pode ser, pois pertenço a outro. Ele não está aqui para defendê-la. As risadas dos que o acompanham enchem o recinto. O salão e tudo o que há nele giram ao meu redor e meus olhos teimam em lacrimejar. Resisto ao choro, e tremem minhas carnes. Num acesso, atiro-me sobre a mão que me ofende. Derrubo-o e mordo com fúria desconhecida o dedo atrevido. Os gritos do homem renovam minhas forças e movo a cabeça, feito cão furioso, meus cabelos em desalinho. Quero arrancar-lhe o dedo, a mão, tudo. O gosto de sangue aguça minha ira. Os que o acompanham bem que tentam nos separar, mas são abatidos pelo capitão da guarda e seus soldados, que invadem a sala. Sento-me no chão, exausta. O vestido é vermelho agora. Cuspo no chão o pedaço de um dedo. O barão, aos gritos, é arrastado para fora. Os soldados recolhem os corpos do chão. Parto agora, digo, decidida. Como, minha senhora? Pergunta surpreso o capitão da guarda, ainda ofegante da luta: e para onde iria? Seu lugar é aqui, esperando pelo senhor seu marido. O homem me ajuda a levantar do chão: vá descansar, não deixaremos que lhe tomem o castelo. Já providenciei para que o barão seja trancado na cela mais inóspita do castelo. Será tratado a pão e água até que o conde volte. E dirigindo-se aos soldados: Que ninguém mais entre no castelo! Coloquem todos em alerta! Percebo que não me deixarão sair e espero no quarto o avançar da noite. Castelo cerrado, soldados em vigília. Silêncio. Somente as sentinelas fazem à ronda no alto das torres. Só agora me dispo do vestido ensanguentado. Recusei o auxílio das criadas de quarto. Quis somente a mim mesma como companhia. Visto um outro que não de festa, nem de nobreza. É o mesmo com que ali chegara, anos. Tecido grosso, pesado, gasto, desbotado, o vestido de uma camponesa. Mas me envolvo num manto de peles, que faz muito frio. Empunho do castiçal, as chamas incertas. Por detrás da tapeçaria a porta. Desapareço pela passagem secreta. Caminho pela sequência de degraus que descem intermináveis. As teias de aranha e a incerteza do destino não me impedem. Levo pão, que furtei da cozinha. Pena ser inverno, se primavera, teria também as frutas silvestres da floresta. Não importa se eu tiver que comer raízes, desde que livre. Chego à porta que dá numa das passagens secretas da muralha, protegida por arbustos. Sopro o pó da fechadura que me separa dos campos. Minhas mãos tremem. Experimento as chaves do molho que trago comigo. Até que a fechadura estala. Puxo a pesada porta e ela, num ranger, se abre.














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