CRISTINA EMÍLIA
ESTRANHOS NO CASTELO
Para
minha Mãe - que nunca deixou de me amar e apoiar.
Ao
meu amado irmão caçula, companheiro de sempre.
Aos meninos e meninas que passaram por mim com
o propósito de aprender, mas que na verdade muito me ensinaram.
Para minhas amigas-irmãs Irleide de Souza e
Luzia Romero, presentes divinos.
A renúncia
É véspera de Natal e recordo-me de
outros já idos, nenhum em
especial. Quando em casa dos pais, somente eu e minha mãe, a
sopa fumegando no caldeirão, o fogo aceso dentro de nossa choupana por ser a
estação fria. Revejo nossas sombras dançando nas paredes enegrecidas de fumaça.
Uma na companhia da outra, a esperar o Divino Menino, já que o pai preferia a
companhia dos amigos camponeses e da cerveja. Estaria a mãe sozinha agora? Por
que não a chamei para cear comigo esta noite? Ainda a mágoa. Vivia o irmão ainda? Há anos a sua partida,
movida pelo incontido desejo de correr o mundo. Nos últimos anos, ali naquele
castelo imenso e gélido, também frios os natais. Não porque indiferentes os
convidados, mas porque me fechara ante as mulheres de seda e os homens de
metal; silenciara quando entre os orgulhosos e seus relatos de guerra;
abstivera-me dos alimentos servidos em rica prataria; recolhera-me diante do
farfalhar dos vestidos e o brilho das espadas. Outro natal e a mesa a mesma dos
de outrora, fartamente servida: carne de porco e de cabrito assadas, peixes
salgados e defumados, pães, doces, molhos, vinhos. Porém outros os comensais,
porque prometera a mim mesma esperar o Salvador acompanhada de meus iguais. Meu
marido ausente, eu a soberana do castelo. Os criados, animados pelo banquete e
pelas canções e representações dos trovadores, comiam e conversavam
animadamente, ignaros ainda dos presentes que lhes reservara: lãs, tecidos e
agulhas para as mulheres; facas, punhais e mantos para os homens. Sinto-me em
família agora. Mas eis que doze homens invadem o salão, interrompendo a ceia.
Quem os lidera é o barão, primo do meu marido. Mal consigo disfarçar minha
insatisfação: não o esperava, senhor barão. Aparentando indignação, ele diz:
que recepção fria, minha prima! Não quis deixá-la sozinha numa noite tão
especial. Vim para fazer-lhe companhia e é assim que me recebe? De que outro
modo eu poderia recebê-lo, se os guardas lhe permitiram a entrada sem que eu
houvesse sido consultada? Não me agrada recebê-lo na ausência do meu marido.
Ele ri: ora, prima, que cerimônia é essa? Sou da família e se bem me lembro, o
conde, seu marido, costumava deixar a ponte levadiça abaixada. Isso em tempos
de paz - argumento – e se ele parte com seus cavaleiros em auxílio do rei é
porque estamos em tempos de guerra. Não nos convida a cear, ele diz,
ignorando-me. Temerosos, os criados retiram-se do salão, permanecendo apenas os
da cozinha, também incumbidos de servir. Penso em pedir que permaneçam em seus
lugares, mas bem sei que manter juntos nobreza e criadagem pode me trazer
problemas. O barão e seus homens sentam-se e são servidos de vinho. Ceando no
salão com os criados, prima? – o barão pergunta – venho em muito boa hora. Parece-me
que a ausência do marido não lhe fez bem. Temo por sua saúde e também pela
propriedade. Por que deixar que uma
mulher tão frágil se sacrifique de tal modo, carregando o pesado fardo da
administração de tamanha extensão de terras e servos? E arremata: como poderia
eu permitir que meu primo perca seus bens por tê-los deixado sob a
responsabilidade da esposa? Sendo eu da família, é justo que os socorra neste
momento de infortúnio. E mirando-me de alto a baixo – ainda mais agora que não
anda bem, pois trata como iguais aos que devem nos servir! Não posso mais
esperar pela volta do conde, já que dele e de seus cavaleiros não se tem
notícias há dois invernos. Sorri e se volta para o prato que lhe é servido. Morde
um pedaço de carne, satisfeito. Comenta algo com um de seus amigos. Minha
cabeça rodopia. Observo os traços do seu rosto, iluminado pela luz dos círios,
os mesmos traços do senhor meu marido, somente o olhar, cortante e frio,
destoa. São do mesmo sangue e poderiam ter feito tanto juntos, penso. Mas o
barão não deseja alianças. Sempre invejara o conde e agora agarrava a chance de
se apropriar do que não lhe pertencia. Sei que não devo permitir, porque
prometi ao senhor cuidar de tudo até que voltasse. Mas como impedi-lo se ele
agora dentro do castelo e pequeno o número de soldados a meu dispor? Procuro
com o olhar o capitão da guarda e o encontro a um canto do salão, calado.
Apenas um homem contra doze. O que podíamos nós? Até ali me saíra bem da
incumbência recebida. Assim como o senhor meu marido, fazia visitas diárias à
aldeia e aos campos cultivados, para manter-me informada e para mostrar aos
servos que, sob meu comando, tudo transcorreria como se na presença do senhor.
Os primeiros olhares que recebi não transmitiram muita confiança, mas me vali
do apoio deste mesmo capitão da guarda, homem considerado entre os camponeses,
que me acena com a cabeça enquanto sai discretamente da sala. Esforcei-me por ser firme e também generosa,
tratando a todos com respeito e dignidade. E fui ganhando o respeito dos que me
serviam que se sabiam iguais a mim. E talvez por isso esforçaram-se em
corresponder à atmosfera estabelecida. Deve saber que tudo está como meu marido
deixou e até melhor, disse-lhe, refeita do temor que me invadira, os camponeses
produzem, a criação de animais prospera, é boa a produção de vinho e as
mulheres fiam. Não há sede, não há fome, não há frio. E ele, abandonando de vez
a falsa amabilidade, retruca: vá queixar-se ao rei, minha senhora. Estou aqui
para cuidar dos interesses que também são meus. Minha tia morta, meu primo
desaparecido, quiçá morto, cuidarei eu de tudo até que retorne, se retornar. E
conclui: quanto à senhora, que infortúnio não ter tido filhos com que se
ocupar! Mas creio que se contentará em passear no jardim, bordar, ouvir canções
dos trovadores, ocupar-se dos seus vestidos, ater-se ao que cabe a uma mulher.
Sabe muito bem que não posso queixar-me ao rei – respondo, indignada - pois que
ele está fora combatendo. É graças à cobiça dele que meu marido e seus
cavaleiros engrossam suas fileiras e me vejo sozinha agora - levanto-me,
decidida - neste castelo não são bem-vindos os usurpadores. Peço que saia de
minha propriedade! Sua propriedade? Ele
r, sarcástico, esqueceu quem é? Uma simples camponesa! Tem sorte de eu não a
expulsar! Mas não o farei, porque estou
sozinho e você também está e acredito que formamos um belo par, diz-me o homem,
estendendo-me a mão maliciosa: saiba que eu a quero, diz. Isso não pode ser,
pois pertenço a outro. Ele não está aqui para defendê-la. As risadas dos que o
acompanham enchem o recinto. O salão e tudo o que há nele giram ao meu redor e
meus olhos teimam em
lacrimejar. Resisto ao choro, e tremem minhas carnes. Num
acesso, atiro-me sobre a mão que me ofende. Derrubo-o e mordo com fúria
desconhecida o dedo atrevido. Os gritos do homem renovam minhas forças e movo a
cabeça, feito cão furioso, meus cabelos em desalinho. Quero
arrancar-lhe o dedo, a mão, tudo. O gosto de sangue aguça minha ira. Os que o
acompanham bem que tentam nos separar, mas são abatidos pelo capitão da guarda
e seus soldados, que invadem a sala. Sento-me no chão, exausta. O vestido é
vermelho agora. Cuspo no chão o pedaço de um dedo. O barão, aos gritos, é
arrastado para fora. Os soldados recolhem os corpos do chão. Parto agora, digo,
decidida. Como, minha senhora? Pergunta surpreso o capitão da guarda, ainda
ofegante da luta: e para onde iria? Seu lugar é aqui, esperando pelo senhor seu
marido. O homem me ajuda a levantar do chão: vá descansar, não deixaremos que
lhe tomem o castelo. Já providenciei para que o barão seja trancado na cela
mais inóspita do castelo. Será tratado a pão e água até que o conde volte. E
dirigindo-se aos soldados: Que ninguém mais entre no castelo! Coloquem todos em
alerta! Percebo que não me deixarão sair e espero no quarto o avançar da noite.
Castelo cerrado, soldados em vigília. Silêncio.
Somente as sentinelas fazem à ronda no alto das torres. Só
agora me dispo do vestido ensanguentado. Recusei o auxílio das criadas de
quarto. Quis somente a mim mesma como companhia. Visto um outro que não de
festa, nem de nobreza. É o mesmo com que ali chegara, anos. Tecido grosso,
pesado, gasto, desbotado, o vestido de uma camponesa. Mas me envolvo num manto
de peles, que faz muito frio. Empunho do castiçal, as chamas incertas. Por
detrás da tapeçaria a porta. Desapareço pela passagem secreta. Caminho pela
sequência de degraus que descem intermináveis. As teias de aranha e a incerteza
do destino não me impedem. Levo pão, que furtei da cozinha. Pena ser inverno,
se primavera, teria também as frutas silvestres da floresta. Não importa se eu
tiver que comer raízes, desde que livre. Chego à porta que dá numa das
passagens secretas da muralha, protegida por arbustos. Sopro o pó da fechadura
que me separa dos campos. Minhas mãos tremem. Experimento as chaves do molho
que trago comigo. Até que a fechadura estala. Puxo a pesada porta e ela, num
ranger, se abre.
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