quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Se você tem medo de cobra, resenha sobre livro infantil


As crianças sentem um misto de medo e de atração irresistível por esse livro, uma bela narrativa africana trazida até nós pelo Rogério Andrade Barbosa, que por ter ido trabalhar na África como voluntário acabou bebendo da fonte riquíssima e inesgotável das narrativas africanas.
O velho sábio da aldeia está à morte. Todos os esforços para curá-lo foram em vão. A comunidade se prepara para despedir-se dele. Mas o velho não quer ir ainda. Ele sabe que não precisa ir agora. Tem uma velha conhecida que pode curá-lo. O problema é que ela é uma cobra gigante, uma Píton centenária e assustadora, que fala a língua antiga e que mora numa longínqua caverna. Quem poderá ir buscá-la se o povo treme só de ouvir falar dela?
O velho pede então que sejam chamados os guerreiros da aldeia, os homens mais fortes e valentes. Os homens atendem ao chamado do velho e de posse de suas orientações, presentear a cobra curandeira com bebida fermentada de milho e cantar o canto sagrado na entrada da caverna (que o velho os ensina momentos antes de partirem) vão em busca da cura. Atravessam o terreno da aldeia, atravessam os campos cultivados, atravessam a floresta, atravessam o rio infestado de crocodilos. Passam sob as quedas dágua, sobem a montanha e finalmente chegam à entrada da caverna, morada da Píton. Ela, que dormia, é acordada pelo canto dos homens: Nyangara Chena, Nyangara Chena. O primeiro do grupo tem nas mãos um vaso cheio da bebida preferida da serpente.
Mas, quando a víbora abre seus olhos, quando estes começam a brilhar em meio a escuridão da caverna, quando a imensa cabeça coberta de escamas da cobra se levanta e sua língua bipartida começa a ensaiar uma dança no ar, nem o mais bravo homem se mantém de pé. Descem a montanha aterrorizados. E a cobra volta a dormir.
De volta a aldeia, os homens admitem envergonhados que vencidos pelo medo não puderam trazer consigo a cobra. E o chefe moribundo dá adeus à vida.
É nesse ponto da narrativa que o papel de destaque é dado às crianças, e que justamente aquelas qualidades que os adultos mais costumam lastimar nelas se tornam as virtudes delas: de curiosas que são tinham ouvido toda a conversa do velho com os guerreiros, então sabiam o que deviam levar, o que deviam cantar, por onde deviam seguir.
Pedem permissão ao velho e saem em busca da cobra. O ponto alto da narrativa é quando ao chegarem à caverna, sentem todo o medo que é possível sentir diante de uma cobra gigante, falante, que os enumera em língua antiga para em seguida subir em suas costas. E é com medo que as vinte crianças descem a montanha e fazem todo o percurso de volta com a cobra nas costas, lambendo a bebida saborosa, porque sabem que se falharem o chefe da aldeia morrerá... São 20 crianças a atravessarem o terreiro, observados pelos moradores aterrorizados. A cobra como é que cura? Lambendo o chefe. (Neste ponto as crianças que ouvem a narrativa ficam enojadas). Após a última lambida, ela desliza pelo chão em direção aos campos. Como recompensa as crianças recebem do chefe cheio de novo vigor um boi, com a expressa ordem de não dividi-lo com os guerreiros.
Excelente opção de leitura para as crianças já cansadas das tão batidas estórias ocidentais, os contos de fadas. Ou para aqueles meninos que pedem “livro de terror” ou para aqueles meninos que não gostam de ler. Depois de ouvir a leitura feita por um adulto é quase certo que pedirão o livro para lerem eles mesmos.

Vidas Secas, 1º dia


Por que foi mesmo que eu decidi reler esse livro? Porque está na lista dos vestibulares deste ano. Mas já fiz graduação... Por que, se já sei que a Baleia morre, se já sei que a pobre da mulher quase que não consegue articular uma palavra (e isso me irrita sobremaneira porque nós mulheres somos donas da palavra, difícil é fazer uma de nós se aquietar por um dia inteiro, que dirá por quase toda uma vida). Por que, se já sei que Fabiano de tão humilde não consegue se valer da palavra, nem essa arma ele tem, diante da ousadia do soldado. Para que reler esse livro se tão triste, tanta miséria, eu que já tinha reservado O senhor dos anéis pra ler, queria algo assim bem leve, bem fora desta realidade árida.... 

É que ando curiosa pra saber que novas impressões, que novas leituras farei desse livro, quase 22 anos depois. É que ouvi de uma dessas professoras poderosas da USP ou da PUC, numa entrevista na tevê, ela dizendo que costuma aconselhar seus estudantes a lerem Graciliano: "Vão ler Graciliano para aprender a escrever de maneira concisa" e eu quero aprender a escrever bem. O que eu queria mesmo era a sabedoria pelo viés da virtude, tenho pra mim que o virtuoso passa longe de tudo que é sofrimento. Mas e se ela passa pelo meio do fogo, e se for a chama ardente que forma o caráter? Se assim é, correr da raia está mais para covardia, e covardia é um vício. Ser virtuoso é ser capaz de passar pelo sofrimento nosso ou alheio, sem se perder nele. É esse meu desafio da semana, não sentir o coração apertado diante da dor alheia, pairar sobre ela, não friamente, mas solidariamente. Como isso? Aprendendo a escrever para bem agradar quem vier a me ler, e quem sabe, até o fim da semana fazer algo de valor em prol do outro (em destaque que é pra eu me lembrar de fazer...).

Vamos lá, então.









Meu exemplar de Vidas Secas, eu comprei baratinho no mês do meu aniversário, ano passado, por dois reais, num desses bazares beneficentes. Nem acreditei porque é raro encontrar um Graciliano, exigência de leitura nas escolas. O meu é da Record, 88ª edição, 2003. Novinho. E lindo.


Ótimo, não tem prefácio.  A gente já dá de cara com o primeiro capítulo, eu não gosto de ser influenciada pela leitura de algum professor ou especialista de literatura. Também não gosto que fiquem na minha frente se quero ver logo o que se passa. Nesse livro o que se tem é um posfácio. Graças a Deus.


Mudança

Estão em retirada. O sol a pino, com fome, há horas que não veem uma sombra. A mãe tem um baú na cabeça e um filho enganchado na cintura. Como é caminhar horas sob o sol e com fome? Como não desmaiaram? O outro menino senta no chão e começa a chorar. Está na cara que é assim que as crianças expressam sua frustração, chorando. Nós adultos ficamos irritados. O pai bate no menino, pensa até em largá-lo por aquele fim de nada. Mas ao tocá-lo no pulso sente-o frio e se condói do filho. Para alguns bastam a visão de uma cena, seja presencial ou virtual, para sentir o coração derreter, mas outros precisam de uma dose mais forte da realidade. Fabiano precisou do toque. Não só ele, muitos enrijecidos pelo excesso de gritos, comida e brinquedos e falta de colo, beijos e abraços. Outro dia no shopping com meus irmãos, vi um menininho de uns dois anos caminhando na frente dos pais. Ia com o rostinho lavado de lágrimas. Pai e mãe, grandes, gordos, caminhando em silêncio atrás. O que é isso, meu Deus, de pai e mãe economizarem em colo em beijo e abraço, de deixar um serzinho tão frágil caminhar com suas dores sozinho desde tão cedo? Depois vão querer proximidade, a mãe vai querer por a mão no ombro do filho e mele vai recuar, instintivamente. Sei bem como é. 

Cenas assim, não do shopping, mas do livro eu já vi em O quinze e em Fogo morto. Gente em retirada, pai espancando filho que destoa do seu protocolo... nada de novo sob o sol.

Foi tanta a fome que um dos da família teve que ser sacrificado na noite anterior: o papagaio. O olhar do narrador deixa pai e filho para se deter na cachorra. Baleia não tem memória de ter comido o amigo. O esquecimento desumaniza, é preciso lembrar pra honrar, é preciso lembrar para não cometer o mesmo erro. Espera, me ocorre agora algo melhor: mais que lembrar é preciso aprender com as experiências, lembrar e lembrar da coisa dorida sem ser capaz de pairar sobre ela numa atitude reflexiva só faz aumentar as feridas. O narrador fala da falta da gaiola sobre o baú e então se desloca para a noite anterior, para explicar como se deu o sacrifício. Sinhá Vitória sentada no chão quente foi dar com os pensamentos no passado, festas, novenas, vaquejadas, em ocasiões assim tem comida em abundância. Então, de supetão ou seja, de impulso, porque só assim se faz coisas como essa, que de sangue frio é mais difícil: a pobre da mulher dividindo a fome com os dois filhos. Mas mesmo no impulso a gente ainda arranja um jeito de justificar nossos atos, para ela ele inútil e mudo. Na miséria a serventia é mais à flor da pele. Quando de barriga cheia é maior a disposição de se admirar a beleza de um papagaio. Mas se a fome...





segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Quando o pai rouba a cena


Foi por ter lido Balzac e a costureirinha chinesa que cheguei a este ao qual agora resenho. Receosa no início, preocupada com a linguagem do autor e com a possibilidade de não ir até o fim da leitura, já que tão distantes no tempo eu e ele, qual não foi minha surpresa ao ver-me enredada no texto. Eu literalmente o devorei em vinte e quatro horas. Era início do meu período de férias e eu me revesei entre os afazeres da casa, os cuidados com o corpo e a leitura. Esse tempo, que eu costumo deixar esvair entre os bate-papos descomprometidos com os amigos e os passeios aleatórios, bem como os programas televisivos esvaziados de conteúdo, nos quais me deixo prender por não ter o que fazer ou por estar no tempo do não querer se comprometer com nada, dediquei-o a Balzac, a Eugenie e ao pai Grandet.  Não sei dizer por que, mas não notei os longos trechos descritivos que costumam atribuir a sua obra, se existem nesse livro eu não notei.
Quer dizer, notei sim, mas não com a carga negativa que se costuma atribuir aos romances com longos trechos descritivos. Balzac não descreve para preencher o espaço entre uma cena tensa e outra que tal, ele não descreve para alongar seus romances, fazê-los mais volumosos. Ou seja, a descrição construída por Balzac e também por Vitor Hugo não são trechos do livro que funcionem como adendos, adereços dos quais se pode abrir mão, pulando páginas em busca dos trechos propriamente narrativos, que o leitor identifica como os diálogos entre o s personagens. Para esses autores a descrição é constitutiva do texto, da estória. Abrir mão dela é abrir mão da compreensão do que há por trás da estória, dos seus sentidos, da suas intenções. A verdade é que me senti encantada com a caracterização do capitalista daquele tempo, das artimanhas para se dar bem em transações, dos sacrifícios a que submeteu a si mesmo e a filha, da completa ausência de outros valores que não o dinheiro. E a descrição, no caso desse romance, vem tão colada à ação, vem tão impregnada de realidade, é tão bem construída, que funciona como uma lente ou uma câmera que vai auxiliando o leitor a ‘ver’ as cenas, as pessoas, o tempo, os valores, os sentimentos, a atmosfera, os cheiros.
Verdade que há características do movimento literário conhecido como romantismo nesse texto e nesse sentido pode-se perceber a coerência entre texto e momento nele retratado, o da insurgência da burguesia, tempo de confluência e de confronto de valores, visões de mundo e de identidades. Uma obra prima.
 Se eu não tivesse lido Pai rico, pai pobre teria visto o pai Grandet apenas como uma pessoa má, quando na verdade o que se tem é um retrato da emergência da burguesia européia, que desprovida de um nome, de um título de nobreza, vale-se do trabalho árduo associado às transações financeiras. O contraste entre os valores de pai e filha, aquele obstinado e intransigente, aquela frágil e romântica, submissa aos mandos do pai (o que podia uma mulher num mundo gerido pelos homens foi uma questão a que poucas mulheres puderam, quiseram ou se empenharam em responder), condenada a uma vida solitária e resignada, embora não desistisse dos seus valores, francamente em decadência naqueles tempos, como a lealdade, a crença no amor, a prática da caridade, o desapego aos bens financeiros.
E ironia das ironias, nem por isso menos querida por seus leitores. É como se quem lesse sua estória desse conta de que, embora viva também num mundo gerido belo valor maior dos bens em detrimento dos princípios, percebe-se não só identificado com a heroína, na sua solidão frente aos costumes, na sua busca de refúgio na religiosidade, mas também, ao se ver refletido nela, se desse conta de que também pode e deve resistir, seja na  busca pela liberdade de escolha, seja no apego ainda mais feroz e comprometido com um ideal de mundo em que acredita.
Foi assim com a costureirinha. Ler Balzac fez dela uma mulher, dona de seu destino e não mais uma sombra colada á parede da proteção do pai, do namorado e do amigo. Na assunção de uma solidão corajosa ( quem teria coragem de descer sozinha a montanha a caminho de um centro urbano impregnado pelo autoritarismo da Revolução Comunista?), coragem baseada não no desconhecimento do que a aguardava, mas na certeza de querer um outro destino que não aquele que lhe ofereciam.
Eugenie Grandet e Balzac e a costureirinha chinesa. Leituras indispensáveis para toda mulher e moça. 

Dossiê coordenador pedagógico


Todos os artigos, entrevistas, colunas e reportagens da Nova Escola Gestão Escolar - Dossiê Coordenador Pedagógico de junho/julho de 2011 versam sobre o coordenador pedagógico, cuja origem recente da função nasceu da percepção dos responsáveis pelas políticas públicas de que a aprendizagem dos alunos depende diretamente da maneira como o professor ensina. A razão de ser desse cargo e desse profissional é dar condições para que os professores possam ensinar. Essas condições não são de caráter físico, administrativo ou material, mas de formação.
Para que essa edição viesse a público, a Fundação Victor Civita encomendou duas pesquisas à Fundação Carlos Chagas: A formação continuada de professores no Brasil: uma análise das modalidades e práticas – comandada pelas pesquisadoras Cláudia Davis, Marina Muniz Rossa Nunes e Patrícia Cristina Albieri de Almeida. E O coordenador pedagógico e a formação continuada de professores: intenções, tensões e contradições, liderada por Vera Maria Nigro de Souza Placco, Laurinda Ramalho de Almeida e Vera Lúcia Trevisan de Souza.
É esta que dá base à edição. Realizada entre 2010 e 2011, teve duas fases: a quantitativa, 400 coordenadores de 13 capitais brasileiras foram entrevistados por telefone; a qualitativa: entrevistas pessoais mais aprofundadas com 20 coordenadores das cinco regiões do país, os diretores das unidades de ensino onde estão locados e 40 professores.
Perfil – 90% dos coordenadores são mulheres, 88% deram aula na educação básica, 76% tem entre 36 e 55 anos. Embora jovens e experientes não têm identidade profissional definida.  Não têm claro a razão de ser da sua função na escola, nem segurança para realizar um bom trabalho. Atuam sem foco, abraçam afazeres que não são seus e atendem solicitações as mais diversas.
Desvio de função. Acompanham a entrada e a saída dos alunos diariamente, conferem se as classes estão organizadas e limpas, atendem telefonemas de pais e de outros que procuram a escola, assumem classes ao menos uma vez por semana.
Organizam excursões, horários, arquivos e escrevem atas.
Passam boa parte do seu horário recebendo, ouvindo e orientando alunos indisciplinados.
Supervisionam e até buscam soluções para os problemas de má conservação dos prédios.
Organizam festas, gincanas, confeccionam bandeiras, convites, cartazes.

Recolhem alimentos para famílias de alunos carentes, buscam organizações que assistem jovens viciados.
Gestão de equipe. São muitas as dúvidas desse profissional: como receber e enturmar o professor novato? Como legitimar seu papel de formador dos professores se até pouco estava na sala de aula? Como ajudar o professor que tem dificuldade em comunicar o conteúdo? Como lidar com a resistência de alguns professores a mudanças propostas? O que fazer com o professor que vive encaminhando alunos indisciplinados? Como enturmar um professor que tem dificuldade de relacionamento com os colegas? O que fazer para evitar a alta rotatividade de professores? O que fazer com o docente que falta muito? Como assistir às aulas sem parecer um fiscal? O que fazer do docente que só reclama?
Quando tenta formar. Mesmo quando tenta atuar como formador, age como fiscal do professor, porque em suas análises, somente aponta os erros daquele.
A formação do formador. Para ele quem deve formá-lo: Secretarias da Educação (1º), diretor (2º), especialistas ligados às Secretarias (3º), ele mesmo (4º) e as universidades (5º).
 Quem melhor que as Universidades, centros de pesquisa em permanente produção do conhecimento, para auxiliar na formação deles? Elas permanecem, as gestões e vontades políticas mudam a cada novo grupo no poder, principalmente na América latina. As Universidades têm função social, se convocadas contribuirão, porque é do ensino básico que saem seus futuros pesquisadores. Paulo Freire, quando à frente da Secretaria de Educação de São Paulo (1989-1991) pediu o auxilio de especialistas de instituições renomadas de ensino superior de nosso país e eles aceitaram participar da reforma democrática do currículo sem custos para os cofres públicos da cidade. Entendo que não vejam nas Universidades potenciais parceiros já que os cursos de pedagogia e de gestão escolar, em sua maioria, deixam muito a desejar.
A formação que as Secretarias oferecem a elas, é a mesma oferecida aos professores.
A lei também não ajuda. Foram lidas regulamentações de 5 Secretarias e, das 256 funções ligadas ao cargo, apenas 20% são explicitamente formativas.
Como toda boa pesquisa, caminhos e orientações são apontados. Não os cito devido ao espaço.
Senti em certas reportagens muita ênfase no trabalho pedagógico voltado para os índices do IDEB. Como se a função da escola fosse apenas esse. Em nenhum momento foram citados a gestão democrática do ensino, os princípios que a regem, que estão na Constituição.  Não foram citados a participação dos educandos e dos pais nas decisões tomadas na escola. A falta de identidade do coordenador não é o reflexo da falta de identidade de uma escola que insiste num modelo de educação e de gestão escolar não antenados com reivindicações que têm sido feitas desde a Escola Nova? A sociedade carece de uma escola que forme pessoas capazes de geri-la, de participar de suas questões. Então o ensino de matemática, de leitura, de ciências e outras disciplinas não pode fugir dessas questões.
Sem dúvida que o retrato desse profissional, que tem sim um papel relevante na escola e na formação do professor, traçado pela pesquisa e divulgado pela revista é de uma relevância sem par. Mas há outras questões de ensino. Ouso dizer que se não foram citadas é porque os coordenadores não têm clareza delas.