quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Vidas Secas, 1º dia


Por que foi mesmo que eu decidi reler esse livro? Porque está na lista dos vestibulares deste ano. Mas já fiz graduação... Por que, se já sei que a Baleia morre, se já sei que a pobre da mulher quase que não consegue articular uma palavra (e isso me irrita sobremaneira porque nós mulheres somos donas da palavra, difícil é fazer uma de nós se aquietar por um dia inteiro, que dirá por quase toda uma vida). Por que, se já sei que Fabiano de tão humilde não consegue se valer da palavra, nem essa arma ele tem, diante da ousadia do soldado. Para que reler esse livro se tão triste, tanta miséria, eu que já tinha reservado O senhor dos anéis pra ler, queria algo assim bem leve, bem fora desta realidade árida.... 

É que ando curiosa pra saber que novas impressões, que novas leituras farei desse livro, quase 22 anos depois. É que ouvi de uma dessas professoras poderosas da USP ou da PUC, numa entrevista na tevê, ela dizendo que costuma aconselhar seus estudantes a lerem Graciliano: "Vão ler Graciliano para aprender a escrever de maneira concisa" e eu quero aprender a escrever bem. O que eu queria mesmo era a sabedoria pelo viés da virtude, tenho pra mim que o virtuoso passa longe de tudo que é sofrimento. Mas e se ela passa pelo meio do fogo, e se for a chama ardente que forma o caráter? Se assim é, correr da raia está mais para covardia, e covardia é um vício. Ser virtuoso é ser capaz de passar pelo sofrimento nosso ou alheio, sem se perder nele. É esse meu desafio da semana, não sentir o coração apertado diante da dor alheia, pairar sobre ela, não friamente, mas solidariamente. Como isso? Aprendendo a escrever para bem agradar quem vier a me ler, e quem sabe, até o fim da semana fazer algo de valor em prol do outro (em destaque que é pra eu me lembrar de fazer...).

Vamos lá, então.









Meu exemplar de Vidas Secas, eu comprei baratinho no mês do meu aniversário, ano passado, por dois reais, num desses bazares beneficentes. Nem acreditei porque é raro encontrar um Graciliano, exigência de leitura nas escolas. O meu é da Record, 88ª edição, 2003. Novinho. E lindo.


Ótimo, não tem prefácio.  A gente já dá de cara com o primeiro capítulo, eu não gosto de ser influenciada pela leitura de algum professor ou especialista de literatura. Também não gosto que fiquem na minha frente se quero ver logo o que se passa. Nesse livro o que se tem é um posfácio. Graças a Deus.


Mudança

Estão em retirada. O sol a pino, com fome, há horas que não veem uma sombra. A mãe tem um baú na cabeça e um filho enganchado na cintura. Como é caminhar horas sob o sol e com fome? Como não desmaiaram? O outro menino senta no chão e começa a chorar. Está na cara que é assim que as crianças expressam sua frustração, chorando. Nós adultos ficamos irritados. O pai bate no menino, pensa até em largá-lo por aquele fim de nada. Mas ao tocá-lo no pulso sente-o frio e se condói do filho. Para alguns bastam a visão de uma cena, seja presencial ou virtual, para sentir o coração derreter, mas outros precisam de uma dose mais forte da realidade. Fabiano precisou do toque. Não só ele, muitos enrijecidos pelo excesso de gritos, comida e brinquedos e falta de colo, beijos e abraços. Outro dia no shopping com meus irmãos, vi um menininho de uns dois anos caminhando na frente dos pais. Ia com o rostinho lavado de lágrimas. Pai e mãe, grandes, gordos, caminhando em silêncio atrás. O que é isso, meu Deus, de pai e mãe economizarem em colo em beijo e abraço, de deixar um serzinho tão frágil caminhar com suas dores sozinho desde tão cedo? Depois vão querer proximidade, a mãe vai querer por a mão no ombro do filho e mele vai recuar, instintivamente. Sei bem como é. 

Cenas assim, não do shopping, mas do livro eu já vi em O quinze e em Fogo morto. Gente em retirada, pai espancando filho que destoa do seu protocolo... nada de novo sob o sol.

Foi tanta a fome que um dos da família teve que ser sacrificado na noite anterior: o papagaio. O olhar do narrador deixa pai e filho para se deter na cachorra. Baleia não tem memória de ter comido o amigo. O esquecimento desumaniza, é preciso lembrar pra honrar, é preciso lembrar para não cometer o mesmo erro. Espera, me ocorre agora algo melhor: mais que lembrar é preciso aprender com as experiências, lembrar e lembrar da coisa dorida sem ser capaz de pairar sobre ela numa atitude reflexiva só faz aumentar as feridas. O narrador fala da falta da gaiola sobre o baú e então se desloca para a noite anterior, para explicar como se deu o sacrifício. Sinhá Vitória sentada no chão quente foi dar com os pensamentos no passado, festas, novenas, vaquejadas, em ocasiões assim tem comida em abundância. Então, de supetão ou seja, de impulso, porque só assim se faz coisas como essa, que de sangue frio é mais difícil: a pobre da mulher dividindo a fome com os dois filhos. Mas mesmo no impulso a gente ainda arranja um jeito de justificar nossos atos, para ela ele inútil e mudo. Na miséria a serventia é mais à flor da pele. Quando de barriga cheia é maior a disposição de se admirar a beleza de um papagaio. Mas se a fome...





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