segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Quando o pai rouba a cena


Foi por ter lido Balzac e a costureirinha chinesa que cheguei a este ao qual agora resenho. Receosa no início, preocupada com a linguagem do autor e com a possibilidade de não ir até o fim da leitura, já que tão distantes no tempo eu e ele, qual não foi minha surpresa ao ver-me enredada no texto. Eu literalmente o devorei em vinte e quatro horas. Era início do meu período de férias e eu me revesei entre os afazeres da casa, os cuidados com o corpo e a leitura. Esse tempo, que eu costumo deixar esvair entre os bate-papos descomprometidos com os amigos e os passeios aleatórios, bem como os programas televisivos esvaziados de conteúdo, nos quais me deixo prender por não ter o que fazer ou por estar no tempo do não querer se comprometer com nada, dediquei-o a Balzac, a Eugenie e ao pai Grandet.  Não sei dizer por que, mas não notei os longos trechos descritivos que costumam atribuir a sua obra, se existem nesse livro eu não notei.
Quer dizer, notei sim, mas não com a carga negativa que se costuma atribuir aos romances com longos trechos descritivos. Balzac não descreve para preencher o espaço entre uma cena tensa e outra que tal, ele não descreve para alongar seus romances, fazê-los mais volumosos. Ou seja, a descrição construída por Balzac e também por Vitor Hugo não são trechos do livro que funcionem como adendos, adereços dos quais se pode abrir mão, pulando páginas em busca dos trechos propriamente narrativos, que o leitor identifica como os diálogos entre o s personagens. Para esses autores a descrição é constitutiva do texto, da estória. Abrir mão dela é abrir mão da compreensão do que há por trás da estória, dos seus sentidos, da suas intenções. A verdade é que me senti encantada com a caracterização do capitalista daquele tempo, das artimanhas para se dar bem em transações, dos sacrifícios a que submeteu a si mesmo e a filha, da completa ausência de outros valores que não o dinheiro. E a descrição, no caso desse romance, vem tão colada à ação, vem tão impregnada de realidade, é tão bem construída, que funciona como uma lente ou uma câmera que vai auxiliando o leitor a ‘ver’ as cenas, as pessoas, o tempo, os valores, os sentimentos, a atmosfera, os cheiros.
Verdade que há características do movimento literário conhecido como romantismo nesse texto e nesse sentido pode-se perceber a coerência entre texto e momento nele retratado, o da insurgência da burguesia, tempo de confluência e de confronto de valores, visões de mundo e de identidades. Uma obra prima.
 Se eu não tivesse lido Pai rico, pai pobre teria visto o pai Grandet apenas como uma pessoa má, quando na verdade o que se tem é um retrato da emergência da burguesia européia, que desprovida de um nome, de um título de nobreza, vale-se do trabalho árduo associado às transações financeiras. O contraste entre os valores de pai e filha, aquele obstinado e intransigente, aquela frágil e romântica, submissa aos mandos do pai (o que podia uma mulher num mundo gerido pelos homens foi uma questão a que poucas mulheres puderam, quiseram ou se empenharam em responder), condenada a uma vida solitária e resignada, embora não desistisse dos seus valores, francamente em decadência naqueles tempos, como a lealdade, a crença no amor, a prática da caridade, o desapego aos bens financeiros.
E ironia das ironias, nem por isso menos querida por seus leitores. É como se quem lesse sua estória desse conta de que, embora viva também num mundo gerido belo valor maior dos bens em detrimento dos princípios, percebe-se não só identificado com a heroína, na sua solidão frente aos costumes, na sua busca de refúgio na religiosidade, mas também, ao se ver refletido nela, se desse conta de que também pode e deve resistir, seja na  busca pela liberdade de escolha, seja no apego ainda mais feroz e comprometido com um ideal de mundo em que acredita.
Foi assim com a costureirinha. Ler Balzac fez dela uma mulher, dona de seu destino e não mais uma sombra colada á parede da proteção do pai, do namorado e do amigo. Na assunção de uma solidão corajosa ( quem teria coragem de descer sozinha a montanha a caminho de um centro urbano impregnado pelo autoritarismo da Revolução Comunista?), coragem baseada não no desconhecimento do que a aguardava, mas na certeza de querer um outro destino que não aquele que lhe ofereciam.
Eugenie Grandet e Balzac e a costureirinha chinesa. Leituras indispensáveis para toda mulher e moça. 

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