Ficção científica é o gênero ao qual costumam associar essa obra de
Aldous Huxley e não há erro nessa classificação. Nela anteviu-se no que se
transformaria e no que seria capaz a sociedade ocidental, para não dizer
planetária. Em 1932 esse autor inglês publica essa, que teve por objetivo
denunciar os aspectos desumanizadores do progresso. Teria o autor desejado
alertar sua época dos riscos a que corria a humanidade devido as opções por ela
escolhidas? Se tivesse ambientado o seu protesto num espaço semelhante ao que
vivia teria alcançado o mesmo efeito? Por que ambientar sua narrativa no
futuro? Para mostrar os efeitos nocivos da ideologia por trás dos usos dos
avanços científicos e do consequente desenvolvimento material a longo prazo.
Mas também é possível que tenha optado por um cenário futurista para causar
maior impacto. O certo é que, visionário
que era, previu que os bebês seriam fabricados em laboratórios, previu que
haveria drogas capazes de suprimir as emoções não digeridas ou incompreendidas.
Previu que as crianças seriam desde o berço condicionadas a não se interessar
pela natureza e nem pelos livros, que aprenderiam a se conformar com as castas,
com a pobreza, com o trabalho pesado, com a privação de recursos que os fariam
desenvolver-se. Que haveria quem aprendesse a tolerar viver sob o signo da
ignorância, da torpeza, da sujeira. E que de modo inverso, haveria quem fosse
ensinado a se julgar superior:
“O serviço dos angares era feito por um só grupo Bokanovisky e aqueles
homens eram gêmeos, identicamente negros e horrorosos. Bernard dava suas ordens
no tom brusco, um pouco arrogante e até ofensivo de quem não está muito certo
de sua superioridade.”
Mas uma observação mais atenta evidencia os mesmos ares da primeira
metade do século vinte e infelizmente, não muito distante da primeira década do
século XXI. Sob uma superfície diversa dos tempos em que o autor vivia, por
trás das máquinas, dos ambientes higienizados, por trás das roupas futuristas
há as mesmas Europa e América do Norte dos tempos de Aldous: gente mais afeita às
compras que ao desenvolvimento do espírito:
“Não se pode consumir muita coisa
se fica sentado lendo livros.”
O olhar de superioridade dos de lá (Europa e EUA) em relação aos de cá:
no livro os que moram na região a que chamamos América Latina são tidos como
selvagens. E mais:
·
A consciência da individualidade como um estado
penoso.
“... percebera de súbito que o esporte, as
mulheres, as atividades comunais não eram, no que lhe dizia respeito, senão
coisas de secundária importância. Não sabia pelo que se interessava.”
·
Soma: a droga distribuída pelo governo: fuga do
que não se consegue controlar ou compreender;
“Com um centímetro cúbico se curam dez
centímetros lúgubres.”
·
A obrigação de ser de todos: sexo sem
compromisso;
·
A eliminação de quem ousa criar formas
alternativas de viver:
“Oitocentos adeptos da vida simples foram
ceifados pelas metralhadoras em Golders Green (como em Canudos)
- Obrigatoriedade de se fazer o que todos fazem;
- Sociedade estratificada;
- Quem vive entre os selvagens não é tido como igual, mesmo que oriundo da mesma sociedade:
“As pessoas das mais altas castas estavam
decididas a não ver Linda.”
Há muitos outros
aspectos da obra que, ora apontam para as conquistas científicas e materiais,
ora apontam os mesmos comportamentos de uma humanidade acometida dos mesmos
vícios há séculos: cobiça, apego aos prazeres fáceis e efêmeros, incapacidade
de ver além da aparência, irracionalidade e violência frente a um outro diverso
e por isso considerado inferior.
Mas o que demais
belo nessa obra é a referência ao tradicional, ao clássico como a essência da
humanidade que não fenece e que é capaz de conceder ao homem a verdadeira
superioridade que lhe falta. Aldous
escolhe como símbolo do que não morre e que por isso capaz de vivificar a
humanidade adoecida o seu retorno às origens clássicas encarnadas na obra de
Shakespeare. Na narrativa, um velho exemplar das Obras completas de William
Shakespeare, “um livro grosso, que
parecia muito antigo, a encadernação tinha sido ruída pelos ratos, algumas
páginas estavam soltas e amarrotadas” é encontrada por um mestiço, filho de
uma mulher oriunda da mesma sociedade civilizada, mas criado entre os
selvagens. É nesse livro que o menino se alfabetiza e é de acordo com o que leu
nela que ele enxerga e compreende o mundo em que vive e o novo mundo para o
qual é levado, quando descoberto. Para os que o recebem no novo mundo ele é ou
objeto a ser analisado (cientistas) ou animal a ser visto numa jaula, uma
atração cultural (sociedade em geral).
A partir do
surgimento do jovem na trama, somos abençoados com trechos de obras do bardo
inglês como A tempestade, Júlio César, Troilo e Cressida, Otelo, Timão de
Atenas, O rei Lear, Medida por medida... proferidos pelo garoto a cada nova
situação vivida, a cada diálogo que ele estabelece com as pessoas que se aproximam
dele. Ele é na verdade um Hamlet em conflito consigo mesmo e com um mundo que
ele não compreende e do qual não consegue se desligar. É fato que quem já
conhece as obras do dramaturgo inglês é capaz de fazer uma leitura muito mais
profunda desse outro clássico inglês, mas mesmo quem não as conhece não sairá
dela ileso. Livro bom é aquele que nos auxilia na nomeação do que sentimos, do
que almejamos, dos lugares e das pessoas onde e com as quais convivemos. A
leitura de certos livros nos confere lentes com as quais podemos enxergar se
não melhor ao menos de modo diferenciado o mundo, e dessa leitura nos
distinguimos, conferimos a nós mesmos uma identidade única. Infelizmente, há
quem se aproxime de obras com esse potencial, mas que não conseguem chegar à
sua essência (sua e dos livros), como os ratos que roeram o exemplar referido
em Admirável mundo novo. Que não sejamos como tais. Da Editora Globo
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