domingo, 3 de junho de 2012

sobre Admirável mundo novo, de Aldous Husley


Ficção científica é o gênero ao qual costumam associar essa obra de Aldous Huxley e não há erro nessa classificação. Nela anteviu-se no que se transformaria e no que seria capaz a sociedade ocidental, para não dizer planetária. Em 1932 esse autor inglês publica essa, que teve por objetivo denunciar os aspectos desumanizadores do progresso. Teria o autor desejado alertar sua época dos riscos a que corria a humanidade devido as opções por ela escolhidas? Se tivesse ambientado o seu protesto num espaço semelhante ao que vivia teria alcançado o mesmo efeito? Por que ambientar sua narrativa no futuro? Para mostrar os efeitos nocivos da ideologia por trás dos usos dos avanços científicos e do consequente desenvolvimento material a longo prazo. Mas também é possível que tenha optado por um cenário futurista para causar maior impacto.  O certo é que, visionário que era, previu que os bebês seriam fabricados em laboratórios, previu que haveria drogas capazes de suprimir as emoções não digeridas ou incompreendidas. Previu que as crianças seriam desde o berço condicionadas a não se interessar pela natureza e nem pelos livros, que aprenderiam a se conformar com as castas, com a pobreza, com o trabalho pesado, com a privação de recursos que os fariam desenvolver-se. Que haveria quem aprendesse a tolerar viver sob o signo da ignorância, da torpeza, da sujeira. E que de modo inverso, haveria quem fosse ensinado a se julgar superior:

“O serviço dos angares era feito por um só grupo Bokanovisky e aqueles homens eram gêmeos, identicamente negros e horrorosos. Bernard dava suas ordens no tom brusco, um pouco arrogante e até ofensivo de quem não está muito certo de sua superioridade.”

Mas uma observação mais atenta evidencia os mesmos ares da primeira metade do século vinte e infelizmente, não muito distante da primeira década do século XXI. Sob uma superfície diversa dos tempos em que o autor vivia, por trás das máquinas, dos ambientes higienizados, por trás das roupas futuristas há as mesmas Europa e América do Norte dos tempos de Aldous: gente mais afeita às compras que ao desenvolvimento do espírito:
Não se pode consumir muita coisa se fica sentado lendo livros.”

O olhar de superioridade dos de lá (Europa e EUA) em relação aos de cá: no livro os que moram na região a que chamamos América Latina são tidos como selvagens. E mais:

·         A consciência da individualidade como um estado penoso.
“... percebera de súbito que o esporte, as mulheres, as atividades comunais não eram, no que lhe dizia respeito, senão coisas de secundária importância. Não sabia pelo que se interessava.”
·         Soma: a droga distribuída pelo governo: fuga do que não se consegue controlar ou compreender;
“Com um centímetro cúbico se curam dez centímetros lúgubres.”
·         A obrigação de ser de todos: sexo sem compromisso;
·         A eliminação de quem ousa criar formas alternativas de viver:
“Oitocentos adeptos da vida simples foram ceifados pelas metralhadoras em Golders Green (como em Canudos)
  • Obrigatoriedade de se fazer o que todos fazem;
  • Sociedade estratificada;
  • Quem vive entre os selvagens não é tido como igual, mesmo que oriundo da mesma sociedade:
“As pessoas das mais altas castas estavam decididas a não ver Linda.”

Há muitos outros aspectos da obra que, ora apontam para as conquistas científicas e materiais, ora apontam os mesmos comportamentos de uma humanidade acometida dos mesmos vícios há séculos: cobiça, apego aos prazeres fáceis e efêmeros, incapacidade de ver além da aparência, irracionalidade e violência frente a um outro diverso e por isso considerado inferior.
Mas o que demais belo nessa obra é a referência ao tradicional, ao clássico como a essência da humanidade que não fenece e que é capaz de conceder ao homem a verdadeira superioridade que lhe falta.  Aldous escolhe como símbolo do que não morre e que por isso capaz de vivificar a humanidade adoecida o seu retorno às origens clássicas encarnadas na obra de Shakespeare. Na narrativa, um velho exemplar das Obras completas de William Shakespeare, “um livro grosso, que parecia muito antigo, a encadernação tinha sido ruída pelos ratos, algumas páginas estavam soltas e amarrotadas” é encontrada por um mestiço, filho de uma mulher oriunda da mesma sociedade civilizada, mas criado entre os selvagens. É nesse livro que o menino se alfabetiza e é de acordo com o que leu nela que ele enxerga e compreende o mundo em que vive e o novo mundo para o qual é levado, quando descoberto. Para os que o recebem no novo mundo ele é ou objeto a ser analisado (cientistas) ou animal a ser visto numa jaula, uma atração cultural (sociedade em geral).
A partir do surgimento do jovem na trama, somos abençoados com trechos de obras do bardo inglês como A tempestade, Júlio César, Troilo e Cressida, Otelo, Timão de Atenas, O rei Lear, Medida por medida... proferidos pelo garoto a cada nova situação vivida, a cada diálogo que ele estabelece com as pessoas que se aproximam dele. Ele é na verdade um Hamlet em conflito consigo mesmo e com um mundo que ele não compreende e do qual não consegue se desligar. É fato que quem já conhece as obras do dramaturgo inglês é capaz de fazer uma leitura muito mais profunda desse outro clássico inglês, mas mesmo quem não as conhece não sairá dela ileso. Livro bom é aquele que nos auxilia na nomeação do que sentimos, do que almejamos, dos lugares e das pessoas onde e com as quais convivemos. A leitura de certos livros nos confere lentes com as quais podemos enxergar se não melhor ao menos de modo diferenciado o mundo, e dessa leitura nos distinguimos, conferimos a nós mesmos uma identidade única. Infelizmente, há quem se aproxime de obras com esse potencial, mas que não conseguem chegar à sua essência (sua e dos livros), como os ratos que roeram o exemplar referido em Admirável mundo novo. Que não sejamos como tais. Da Editora Globo


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