domingo, 3 de junho de 2012

sobre Liberté, filme francês


Filme comovente. Fotografia belíssima. A Europa está em plena Segunda Guerra Mundial, mas os ciganos não parecem se dar conta do horror que paira sobre suas cabeças. São nômades, vivem do perambular pelos países europeus: Espanha, França, Bélgica. Não somente os judeus, mais negros, homossexuais e ciganos também foram vítimas do ódio ariano. Antes da guerra, viviam mais de dois milhões de ciganos em toda a Europa. Os nazistas eliminaram de 250 a 500 mil deles. O filme documenta de uma forma difícil de descrever (sensível, poético, humano) a vida de uma família deles. Enquanto a câmera registra suas perambulações, sua fome, sua alegria, sua música, seu senso de grupo de família, seus valores, vamos nos dando conta que sabemos bem pouco deles, que nosso imaginário preenchido com as canções do Gipsy Kings – encantadoras é preciso frisar - , precisa ser ampliado.
São divertidos, são festivos, são unidos. E não estão inteiramente alienados, sabem de alguns dos riscos que correm. Por isso portam cadernetas que são constantemente apresentadas às prefeituras dos lugares em que acampam. E recobrem os cascos e as rodas das carroças com tecidos para não serem ouvidos pelos alemães que patrulham as florestas.
Os franceses simples, os do povo os temem. Tudo neles lhes é diverso: a cor dos cabelos, da pele, das roupas, a língua, os costumes. São tidos como ladrões. Mas não todos. A professora (inspirada numa combatente da resistência francesa) recoloca cuidadosamente a folha seca que um dos ciganos traz em seus documentos (recordação de uma pessoa, um momento ou um lugar?). É ela quem vai ao acampamento deles convencer os adultos a deixarem que suas crianças frequentem a escola para aprenderem a ler e a escrever. É também ela quem vai com o prefeito buscá-los num dos campos em que são confinados os ciganos que insistiram em viajar, desobedecendo a uma lei francesa. Lugares assim tornaram fácil aos alemães deportá-los posteriormente para os campos de extermínio.
O prefeito, depois de ter sido socorrido por eles quando atacado por um cavalo enlouquecido, manda-lhes comida, dá-lhes uma casa para morar e empreende com eles uma amizade baseada na tolerância, na paciência e na sabedoria, a de ver no outro mais que aquilo que nos causa estranhamento (eles puseram estrume na mordida e entoaram orações fervorosas em prol dele e da égua desfalecida, um momento inesquecível: quem é que ora por um animal e por um estranho? Quanta grandeza em pessoas tão simples, de quem se pensa coisas tão diversas!).
A casa é para que não partam e para que não sejam presos. Estão ali apenas para a colheita da uva. Mas um francês – e fico me perguntando quantos franceses lucraram com a ocupação alemã, quantos desse povo tão admirado agiu em conluio com os interesses e baixezas nazistas – leva-lhes os cavalos. Um de seus capangas encosta o cano da arma na cabeça de uma velha cigana. Como ser capaz de tais atos? Ganância e preconceito são as doenças para as quais ainda não foi encontrada a cura e sob as quais as potências nacionais e humanas têm sucumbido. Até quando e a que preço?
Os guardas franceses são ríspidos, arrancam-os do sono em plena madrugada para conferirem as tais cadernetas e seus respectivos carimbos. Arrastados a um acampamento, são resgatados pela professora e o prefeito.
São tão poucos os que os veem como portadores dos mesmos direitos! E ainda assim, os ciganos permanecem na sua grandeza. São leais: não partem sem que todos os membros do grupo estejam juntos; são humildes: aceitam pagamento para tocarem para galinhas que não botam seus ovos; são pacíficos: ‘os ciganos não fazem guerra’, diz um deles quando o prefeito lê para eles a lei que os proíbe de viajar.
A beleza do filme é justamente resgatar um dos grupos vitimados do genocídio da Segunda Guerra, é desmistificar os estereótipos que ainda permeiam as mentes, tantos anos depois. Todo grupo étnico tem sua cultura, sua beleza, sua riqueza, seu jeito de lidar com a vida. E conhecê-los, e interagir com eles, potencializa as mesmas características em nós.
Trazer à público o cotidiano de uma família pertencente a esse grupo étnico, visto como preguiçoso, perigoso e ladrão faz desse filme imperdível, embora dolorido de ver, porque já se sabe do que lhes vai ocorrer. É essa a sua mensagem maior: impossível a passividade diante da injustiça e da destruição daquilo que aprendemos a conhecer a e a admirar. Talvez aí resida a nossa cura.
Essa obra de arte eu vi num dos canais da HBO.

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