Não se pode dizer que se trate de um livro escrito por Paulo Freire, mas
também não se pode dizer que não. É um livro-entrevista, como o de Telma Weisz
(Diálogo entre o ensino e a aprendizagem). Mas há diferenças entre eles. Ao defender, definir, exemplificar e
desmistificar o método construtivista, Telma foi resgatando a essência do
ensino, que é a interação dialética entre educador e educando, aquele numa
posição privilegiada porque já sabe o que o outro precisa aprender, porque já
sabe (ou deveria saber) como esse outro aprende e que é também aprendente, na
medida em que precisa inteligir o que o outro já sabe, para bem propor
intervenções que possibilitem o aprendizado deste outro. Outra diferença é que
Telma foi entrevistada por uma só pessoa, uma entrevista longa que rendeu muito
material a ser aproveitado quando lhe sugeriram a publicação de um livro. A
pesquisadora participou ativamente da confecção do livro e contou com a
colaboração d ex-alunas.
Educação na cidade é um apanhado
de entrevistas que o Mestre concedeu primeiro semestre da sua assunção da pasta
da Secretaria de Educação da cidade de São Paulo. Tais entrevistas ( 10 ao
todo) divididas no livro em duas partes parecem ter sido motivadas pelo
inusitado da situação vivida pelos paulistanos, quando esses optaram em ter
como prefeito uma mulher nordestina de esquerda, uma verdadeira revolução. A
prefeita, por sua vez não hesitou em convidar para gerir a educação da cidade
nada menos que Paulo Freire, o mais influente e aguerrido educador que o Brasil
já teve, com dezenas de livros publicados, criador de um método de
alfabetização, perseguido pelos militares, reconhecido internacionalmente...
Quão capaz seria ele em efetivar seus princípios e propostas educacionais? É a
esta questão que o livro vem resolver.
O que ele quis nos dois anos em que conduziu a educação da cidade foi
mudar a cara da escola de São Paulo, vítima de défits quantitativo e qualitativo.
Eram os anos 1989-1991 e havia um número significativo de crianças fora da
escola, o currículo inadequado às características etárias, de classe e às
necessidades dos que a freqüentavam, condições físicas das escolas eram deploráveis:
“...50 escolas com teto caindo,
pisos afundando, instalações elétricas provocando risco de morte, quinze mil
conjuntos de carteiras escolares arrebentadas, um sem-número de escolas sem
carteira escolar...”(p.23)
Os ideais, princípios e objetivos que emanam da Carta Magna
recém-promulgada não haviam chegado à escola paulistana, princípios como a
cidadania, a dignidade da pessoa humana; objetivos tais como a construção de
uma sociedade justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a
erradicação da pobreza, da marginalização, a redução das desigualdades sociais
e regionais, a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, do direito à educação.
Esses e outros pressupostos democráticos da gestão da polis, que tem por meta o
desenvolvimento de todos como fundamento do desenvolvimento da nação não haviam
ainda influenciado os modos de se fazer a educação na cidade.
Mesmo tendo por formação o Direito, não foi por este viés que Paulo
Freire buscou reformular a escola e sua prática. Foi por meio da sedução dos
educadores, proporcionando-lhes experiências democráticas como a participação
na reformulação do currículo, o aumento salarial, a criação de um estatuto do
magistério e do plano d carreira, a reforma e melhoria dos equipamentos e
prédios escolares, a formação permanente do professor desde a base escolar,
desde o seu lugar de ofício, tendo como ponto de partida a reflexão sobre a
prática, para que educadores e educadoras fossem eles mesmos percebendo onde
sua metodologia e conceito de educação viabilizavam ou obstaculizavam a
efetivação do modelo democrático de escola e de país por muitos desejado, mas
muito pouco conhecido nos modos de construí-lo.
Foi como gestor democrático e progressista que Paulo Freire se disponibilizou
a dialogar com diretoras, coordenadoras, supervisoras, professoras, zeladores,
merendeiras, alunos, famílias, lideranças populares. Porque sabia que a escola é
espaço privilegiado para a formação cidadã na medida em que se abre e que
compartilha o poder com educandos e comunidade, aceitando os riscos e desafios
que esta postura mobiliza. Porque sabe que é seu papel ensinar a pensar certo
através do ensino dos conteúdos.
E o que seria o ensinar a pensar certo? O ensino que ensina a pensar
certo é aquele que, através dos conteúdos desoculta a razão de ser dos
problemas sociais que afligem a cidade e o país. Uma educação que mereça ser
chamada como tal ensina a liberdade, não a licenciosa e destrutiva, mas a do
compromisso com a construção de um mundo melhor. E para poder escolher que tipo
de presença no mundo o educando quer ser ele precisa saber em que mundo vive,
qual sua grandeza e qual sua pequeneza. É neste aspecto que a escola, micro do
macro que é a sociedade tem o dever de oferecer à criança, ao jovem e à
comunidade espaços coletivos de
participação das decisões e das ações que contribuam para sua melhoria.
Há muito neste livro da pessoa, do profissional, do administrador que
Paulo Freire foi. Um modelo para quem é gestor, para quem é brasileiro, para
quem é educador.
Aqui, faz-se a opção de chamar a atenção do coordenador pedagógico da
escola municipal de São Paulo. Até que ponto este tem sabido cultivar os ideais
democráticos de educação na escola em que atua? Paulo Freire sabia a que vinha.
O coordenador sabe? Paulo Freire tinha uma agenda para a educação da cidade,
aquilo a que chama-se plano pedagógico, com princípios, diagnósticos, metas,
ações, colaboradores. Tudo visando a mudança da cara da escola, nos moldes
democráticos. Foi por isso que o Conselho de escola e o Grêmio estudantil
receberam a devida atenção na gestão dele. Que atenção o coordenador pedagógico
tem dado a esses institutos democráticos?
Paulo Freire sabia que a mudança da escola não se dá por decreto, mas por
meio da valorização dos profissionais dela, seja pela melhoria das condições de
trabalho e de salário, seja na promoção de uma formação permanente que o
auxilie a superar a sensação de desvalor (todas as mazelas da Educação são
atribuídas à suposta má formação do professor), da impotência frente aos
desafios do ensinar, em grande medida oriundo da incapacidade do diretor e do
coordenador em construir uma equipe com os seus docentes, em assumir como
problema de todos o de um, porque o aluno ou a classe não é do professor, é da
escola.
Pesquisas recentes vêm demonstrando que o coordenador pedagógico, líder
dos docentes, não se vê como tal, não tem claro o seu papel e desperdiça tempo
e energia realizando o que não é do seu ofício, que é cuidar da formação
permanente dos professores. Em Educação na cidade, Paulo Freire tem muito a
lhes ensinar.