segunda-feira, 16 de abril de 2012

Escada infinita que leva ao céu


            Escada infinita que leva ao céu
            Quantos passos me faltam para te superar?
Não ouso olhar para trás
Que posso me desequilibrar
Mesmo sabendo que o inventário
          Dos feitos podem me entusiasmar...
    
            Escada infinita que leva ao céu
            Qual o arquiteto responsável por tua existência?
            Por que tão inclinada
            Por que tão espiralada?
            Quererá ele provocar minha derrocada?
            Escada infinita que leva ao céu
           Quero me sentar para ver se passa
           A vertigem que me assalta
           De tanto mirar
            O teu fim entre as nuvens
             E a ele chegar.

            Escada infinita que leva ao céu
            Por que me incita a esta louca jornada?
            Estou só, outros te abjetam
E se deliciam com pão e mel
E eu que tanto anseio a Ambrósia
Tenho vazio o farnel.

Escada infinita que leva ao céu
Envia o mestre, o mensageiro fiel
Enfim, quem possa me acompanhar
Que ando fraca e cansada.
E preciso me animar
Com um sorriso, uma mão amiga, o brilho de um olhar.

Escada infinita que leva ao céu
É meu destino seguir por ti
Mesmo sem saber se chegarei a teu fim.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

eternidade - poema

se um homem morre;
não morre a ideia que o homem semeou no coração
doutros homens.

essa  a maior contribuição
que se pode dar
aos que nos acompanham

só o amor é que cura
 verdadeiramente
mesmo que a ferida mate

eu sou o que fala
através dos homens

eu sou o que rege
as mares dos mares

eu sou há eras
o sal dos mares
o calor dos montes
e o sabor do mate
eu sou o que age
a favor da vida

eu sou o poeta
eu sou a madre
tudo isso eu sou
eu sou o amor







terça-feira, 10 de abril de 2012

frio a dois - poema


Por que, se havia comida?
Por que,se cinema, se viagem e festa
e gente à beça?
Por que, se você e eu letrados?
Por que se carro comprado,
se diplomas conquistados
e tevê bem grande esperando na sala
e sapatos e roupas e livros
e Phil Collins cantando 
Can't turn back the years
e a luz apagada... ?


Porque as frases foram ficando cinza
e a comida, se servida, fria.
Porque a cama e a casa vazias
de algo inominado, mas desejado.
Porque o tempo, ponteiros do relógio,
não quis esperar.
Eu fui, você ficou,
eu fiquei, você foi
desencontro a dois.

novelo - poema

o amor é cego
é cego o amor
cego o amor é
o sábio é cego amor
o amor cega
é sábio amar
sábio amor é cego
cego e sábio é amar

questão filosófica

o que é mais importante
o telescópio ou o astrônomo?
....
as estrelas.

devaneios - poemas




Estava na cozinha, decidindo até que horas me dedicaria ao cuidado da casa. Tenho uns livros que me esperam... quando ouvi do rádio:

I’m so tired in fall in love

Era o que dizia a canção que tocava na Antena 1
Às 11h45 da manhã.
Amigo, você não ama, pensei
Você se apega

I’m so tired in play this game...

Mas quem disse que amar é um jogo?
Amor é cura (minha e sua)
É compartilhar
 A jornada
É sentimento leve,
Que te preenche todo
E alegra todo o seu dia
Todo dia
Amor/ amar não é caça
O amado, a amada,
Não são presas
São seres especiais
Que despertam o melhor em nós
Tudo o mais é falácia






O mal mata
Quem o pratica
E quem nele acredita
Porque só o Bem é vida
E chega um tempo
Em que não é mais possível
Transitar pelos dois

domingo, 8 de abril de 2012

Alheamento - poema


Cada grão
De chuva
Plantado no chão
Árido
Do meu sertão
É esperança de vida
De fruta no pé
E pão
Nas mãos e bocas
Das minhas crianças
Sofridas.

Cada grão de chuva
Que você recrimina,
sulista,
É pepita preciosa
Que cobriria de verde
A minha terra ressequida
Se ele caísse por lá.

Eu sou uma ave mirrada
Que agora voa
Sob a garoa
Desse lugar cinza e triste
                                                             Em que a água veio abundar

stay, darling - poema

Oito de abril de 2012




Escrever é desenhar pensamentos no papel, mas com palavras, as imagens brotam no céu da mente! Eu considero os poemas de Florbela Espanca de uma tristeza atroz. Quanta dor, quanta solidão, quanta saudade!  Deve ser porque as dores dela evocam as minhas. Ela mesma escreveu:

Não sei que têm meus versos,
Alegres quero fazê-los, mas ficam-me sempre tristes
Como a cor dos teus cabelos.

Li seus poemas na noite do dia em que aquela garota de voz maravilhosa, subjugada pelas drogas morreu. Ambas sensíveis à aridez da vida que não souberam escrever. Mas quem o sabe? Quanto a mim, se não fossem a oração, os livros, o trabalho e as crianças já teria sucumbido. Pela loucura ou pela morte prematura. Thank you, Lord, for this life, que ainda pulsa em mim.

For you, darling

Fica triste não, Florbela
Vem, pega minha mão
Eu também não tive filhos,
Eu também perdi irmão!

Os que amei foram-se
Escoaram de minhas mãos
Meu corpo recebeu o toque
De quem não amei
(ou amei pouco)
...

Então, poeta ferida
Se te vale de conforto
Não és a única a receber da vida tantos espinhos
(em que vida e de que modo os semeamos?)

E apesar de tudo,
Não cante a morte.
Apega-te à vida,
É o que me digo
A cada noite, a cada notícia triste,
A cada suspiro de saudade.

Se te vale um conselho,
Se te vale a companhia,
Stay here, darling
Fica aqui por mais um dia.





sábado, 7 de abril de 2012

cura para estresse - conto

Por que foi mesmo que peguei este livro pra ler? A sim, a cabeça cansada, a respiração curta. Deitei pra descansar, mas não consegui dormir. Que inquietação esta? Comecei a respirar pausadamente, a prestar atenção no peito subindo e descendo pra ver se melhorava. Foi quando o olho foi pousar no livro, largado perto da cama. E a capa de um azul celeste. Um dragão verde, de chifres marrom-vivo, entre as nuvens, ele me contemplava. Peguei pra ler.' "Cadê a ação? Não tem fogo cuspido, não tem casebres pegando fogo, gente correndo e gritando, um herói perfurando o coração do dragão com a espada?" Não. Só uma porção de entrevistas, sete delas." Que mulher mole, meu Deus, como é que deixa o homem descontar na criança sua incapacidade de ganhar dinheiro... Toda criança deveria ter um mestre pra cuidar dela. Isso de dragão em pleno século XXI não colou muito, mas a estória é boa. Que perguntas eu faria a um dragão? E se o dragão fosse mau? A que objetos estou apegada? Xi... estou me fazendo as mesmas perguntas do garoto do livro... Acabou. Até que o livro é bonitinho. Deixa ver o que tem de dragão aqui na estante....

sequência didática II


Escola: X
Prof.: Cris
Turma: 4ª series (5º ano) do ensino fundamental I
Ano: 1º semestre de 2012

                                    Sequência didática

Disciplinas: Língua Portuguesa (leitura, interpretação, discussão, compreensão e análise lingüística) e Ciências

Objetivos:
·        Identificar a grafia do porque (resposta ou explicação);
·        Identificar a grafia do por que ( para iniciar questões diretas ou indiretas);
·        Estimular a leitura de revistas de divulgação científica para crianças;
·        Estimular entre as crianças a elaboração de perguntas científicas;
·        Desenvolver a habilidade de formular hipóteses;
·        Desenvolver um dos procedimentos científicos: comparar as hipóteses elaboradas pela turma com as informações encontradas;
·        Conhecer diferentes fontes de pesquisa;


                 
Conteúdo:
·                    Questões científicas;
·                    Por que, porque;
·                    Procedimentos de pesquisa: elaboração de perguntas, elaboração de hipóteses, seleção de fontes de informação, registro de informações, comparação de informações, escrita de texto síntese;



Recursos:
·                    Revistas Ciências Hoje para Crianças, caderno, lápis, borracha, canetas, lousa, giz; canetas coloridas, lápis de cor, cartolina, sulfite, papel crat ou pardo.

1ª etapa: primeiro contato

Num dos momentos de leitura da semana, avisá-los que conheceremos uma revista de ciências para crianças, distribuir uma para cada um deles, com a orientação de, após uma primeira olhada (criança gosta de folhear, de observar as ilustrações,) elejam alguma descoberta que tenham feito durante a leitura dela (reservar de 15 a 20 minutos para esta atividade).

Após o tempo estabelecido, pedir que socializem com os demais as descobertas realizadas.
Se não houver exemplares suficientes para todas as crianças, pedir voluntários (de 5 a 10, conforme o número de revistas disponíveis), estes levarão as revistas para casa com o propósito de selecionar uma descoberta e divulgá-la para a classe no dia seguinte. Nesse caso, deve-se cuidar para que durante o trabalho com elas, as mesmas devam estar disponíveis ou no cantinho da leitura ou sendo levadas para casa (rodízio).

2ª etapa

A professora avisa a turma que as aulas versarão sobre assuntos que circulam em pelo menos duas disciplinas: português e ciências e que durante esse trabalho serão realizados os mesmos procedimentos de um cientista ou pesquisador: a pesquisa; e que conhecerão mais aprofundadamente umas das sessões da revista CHC, a seção Por que... ?
Na lousa a professora escreverá pelo menos 5 questões selecionadas de edições antigas ou recentes de CHC. Estas foram as que eu selecionei para o meu trabalho:

·                    Por que o céu é azul?
·                    Por que se deve lavar as mãos após tocar as asas de uma borboleta?
·                    Por que piscamos?
E pedirá às crianças que pensem em respostas para elas.

Segue-se então que as crianças vão dizendo as respostas para as questões, a professora escreve as respostas, não importando se mais próximas ou distantes das descobertas científicas, pois haverá um momento em que as respostas serão confrontadas com as de fontes científicas. O ideal seria ter um datashow para o registro feito pela professora ou por um auxiliar, se ela tiver. Se não, pode-se escolher um redator ou dois entre a turma, para que as crianças fiquem livres para pensar. Em classes muito agitadas costumo pedir para que todos registrem comigo, neste caso, escrevemos duas hipótese diferentes para cada questão. A professora então informa as crianças de que as respostas que elas deram para as perguntas se chamam hipóteses, que os pesquisadores fazem o mesmo, pensam em respostas para as perguntas que criaram ou lhe foram propostas e em seguida partem para a pesquisa, que é ir ler livros, revistas, entrevistar pessoas, enfim buscar mais respostas para a pergunta com que estão trabalhando.

3ºetapa
Esta etapa deve ser realizada no mesmo dia, se o suporte textual utilizado para o registro das hipóteses dos estudantes for a lousa.
A professora retoma as perguntas e as respostas e escreve ou sublinha numa outra cor cada vez que aparece porque e por que. Pergunta então às crianças por que eles aparecem escrito diferente. Espera-se que as crianças percebam que o que determina a grafia diversa é o tipo de oração, se questão, por que; se afirmativa (explicação) porque. As crianças dirão (sempre há os mais observadores que percebem a regularidade): “por que separado é pergunta. Porque junto é quando responde”. Pedir que anotem no caderno essa descoberta, com caneta colorida ou num quadro colorido, para que fique em destaque. Se a professora perceber que há um ou outro distraído, perguntar a vários deles, pedir que lhe expliquem o porque da grafia diversa, enfim, retoma o assunto, para garantir que a maioria acompanhe e entenda o que  está sendo estudando.

4ª etapa
A professora apresenta à classe os exemplares que trazem as respostas para as questões por ela apresentadas à turma. Mostra o índice e a página da seção, mostra a página em que o texto aparece. Avisa-os de que do texto selecionará apenas um parágrafo, em que a resposta está.
Segue-se a leitura e discussão dos enunciados, para que haja a compreensão do que diz. Só então é que se dá a comparação dessas com as que as crianças haviam elaborado, o que implica em voltar às anotações feitas em aulas anteriores. Nova discussão: quais das nossas estão de acordo com as da revista, em que se assemelham, em que diferem? O que garante que as respostas apresentadas pelas revistas sejam verdadeiras? (nesse momento, apontar o nome, a função e o órgão para o qual o escritor do texto trabalha. Quase sempre são professores ou pesquisadores de importantes instituições de ensino ou pesquisa, o que confere autoridade às informações apresentadas. As crianças precisam saber que é preciso conferir as credenciais de quem profere o discurso, para que não sejam manipuladas ou incorram em erro).
Da discussão, deve-se selecionar a resposta adequada.

4ª etapa
Elaborar coletivamente ou em pequenos grupos um quadro contendo de um lado as perguntas de outro as respostas selecionadas. Se a escola tiver laboratório de informática, essa é uma boa oportunidade de aproximar os espaços e os recursos, tendo como eixo a pesquisa. Pode-se procurar por outras fontes, pode se confeccionar os quadros-síntese.

5ª etapa
Se a professora julgar necessário, pode-se propor às crianças exercícios de fixação dos usos do por que/porque.

6ª etapa
Elaborar com eles uma lista de suportes textuais que atuam como fontes de pesquisa. Onde podemos buscar respostas para nossas perguntas? A professora pode acrescentar fontes por eles não apontadas, como os dicionários pedagógicos produzidos pelas editoras, as enciclopédias eletrônicas  (em discos ou na internet), jornais infantis, as enciclopédias para crianças ( Larousse) , as revistas Recreio etc.


7ª etapa
Pedir que escrevam em dupla, um relatório das descobertas, nesse relatório não pode faltar: o que estudamos, quando, onde, com que materiais, como, o que descobrimos, o que falta saber, o que foi bom, o que precisa melhora, sugestões. Para que não se percam nem se cansem a professora pode dividir a primeira escrita em três momentos: os dois primeiros para pôr o texto no papel, o terceiro (que pode se desdobrar em mais) para conferir se esta tudo bem, do ponto de vista do assunto e sua estrutura, do ponto de vista da estética textual (parágrafos, ortografia, concordância).
Os textos podem ser publicados em mural da escola ou sala, em blog. Duplas podem ser escaladas para apresentar o trabalho a outras classes, como o professor preferir, mas dar destaque ao trabalho e oportunizar que eles socializem seus estudos motivam-nos a gostar de estudar.

Avaliação
É formativa, a professora observará o envolvimento das crianças, em que momentos apresentam dificuldades e avanços: organizar os pensamentos? Falar em público, acompanhar as discussões enquanto escrevem? Manter as anotações em ordem, entender os trechos retirados da revista? Apontar semelhanças e diferenças nas respostas, argumentar sobre o porquê manter-se uma ou outra? Trabalhar em grupo, manter-se atento? Seguir o roteiro para a escrita do relatório, acompanhar todas as etapas do trabalho, iniciativa, autonomia? E ir ajustando os procedimentos, ir acompanhando de modo mais próximos os que apresentam maior dificuldade. O momento da escrita apontará quais aspectos lingüísticos merecerão um trabalho sistematizado, o momento da leitura e da compreensão apontarão para a dificuldade em se compreender textos informativos; elaborar ou pesquisar experiências com o trabalho com esse gênero para a desenvolvê-lo em classe? São algumas das questões que permearão a avaliação da professora.








sexta-feira, 6 de abril de 2012

O poder da música - conto


 Ele era o terror da sala, uma classe de Jovens e Adultos. Tinha dezesseis anos e era recém-chegado do Nordeste, não me recordo de que estado. Pernambuco talvez. Nós, professoras e pseudopsicólogas de plantão, inferíamos que ele tinha uma profunda mágoa da mãe. Esta, cansada das dores de cabeça que ele havia lhe proporcionado, despachara-o para a irmã aqui em São Paulo, a única pessoa da família a quem ele ouvia. Tratei logo de pegar o número do celular dela e quando ele começava a fazer desenhos obscenos para mostrar às senhoras evangélicas ou a provocar o Fernando - rapaz brilhante, mas que vez por outra comparecia às aulas embriagado, eu já avisava:
"Comporte-se ou avisarei a sua irmã."
Nunca gostei de ameaças, sempre acreditei ser possível criar laços ou pelo menos estabelecer um clima de respeito entre eu e meus estudantes, mas as tentativas de aproximação com D. fracassaram todas. E tanto eu quanto as demais professoras não tínhamos a graça de uma noite tranquila em sala de aula, toda noite era uma discussão, um tumulto.
Até que um dia D. se transformou.  Naquele ano, desenvolvíamos um projeto denominado "Cultura Popular" no ensino noturno da escola. Com ele, buscávamos não só romper com o velho conceito de folclore, mas também tornar o ensino e a aprendizagem mais dinâmicos e prazerosos, porque significativos, oriundos das vivências dos estudantes. Muitos deles vinham do Nordeste e possuíam muitos saberes que pretendíamos não só valorizar, como inserir no currículo escolar, explicitar neles o conhecimento embutido e tantas vezes desconsiderado ou esquecido.
A oitava série havia decidido dramatizar os causos e contos resgatados nas aulas de Língua Portuguesa e um dos rapazes ficou de tocar violão em uma das dramatizações. Como ele não tinha um, eu levei o meu, que até aquele momento era apenas um objeto de decoração do meu quarto. Tão bonito em sua capa de couro, testemunha do meu fracasso musical ( comprara-o no ano anterior, resolvida a aprender a tocar violão, mas desisti, após duas aulas: achava-o grande, complicado para segurar e faltava-me a agilidade no dedilhar...). Cheguei na escola com o violão e minha primeira aula era na classe de D., o complicado. Quando me viu com o violão, aproximou-se para conversar comigo, o que nunca acontecera antes. Perguntou se eu sabia tocar. Falei de minha tentativa frustrada. Devolvi-lhe a pergunta e ele foi me dizendo que estava aprendendo de olhar: quando um amigo começava a tocar, ele prestava o máximo de atenção para aprender. Como apanhara nas aulas de violão, duvidei: " Você aprende a tocar violão só de olhar?" e ele: " De vez em quando ele me deixa tocar." Pus o instrumento em suas mãos e de fato ele tocou algo que me pareceu harmonioso. O sinal tocou, hora de eu ir para outra sala e ele pediu para me acompanhar. Disse que sim, surpresa com esse novo D. que se revelava diante de mim. Na outra sala, a oitava série das dramatizações, ele grudou no outro rapaz,  os dois começaram a conversar e a tocar violão. Teve quem se irritasse com a som e as conversas, mas eu não podia interromper aquele momento: D. estava conversando amigavelmente sobre música! Combinamos que poderiam continuar as conversas e o dedilhar do violão no corredor e mesmo durante o jantar os três não se largaram. Só pararam de tocar quando uma das cordas do violão se rompeu.
D. se prontificou a trocar a corda. Perguntei-lhe do valor de uma nova, para lhe dar o dinheiro necessário e ele disse que era baratinha, que ele mesmo compraria. Consenti, o queixo no chão. No dia seguinte, ele trouxe o violão, a corda novinha. Olhei para ele segurando aquele violão e pensei que se aceitasse o instrumento, este ficaria abandonado sobre a poltrona do quarto, mudo e frustrado. Enquanto que se permanecesse com o rapaz, quem sabe... Propus-lhe um acordo:"D., em casa o violão ficaria parado, já que ninguém toca e eu ando sem tempo e vontade de retornar às aulas. O que acha de ir treinando nele até o fim do ano?"
Ele aceitou, todo sorridente. Daquele dia em diante, nossa relação melhorou consideravelmente. Não digo que ele tenha se transformado num anjo, ainda havia uma discussão, um conflito aqui e ali, mas a frequência e a intensidade deles diminuíram.
Primeira semana de dezembro, D. entrou na sala com o violão, conforme combináramos. (Era um garoto de palavra). Retirou-o da capa para que eu visse que o violão estava em bom estado, que cuidara dele. Olhei para o violão e não o reconheci. Repleto de adesivos, tinha as marcas de um adolescente. Já não me pertencia mais.
"Quero propor-lhe algo. Fique com o violão, mas em troca terá que fazer algo muito importante para mim."
" O que?" - ele me perguntou, no rosto uma mistura de alegria e apreensão.
"Quero que se esforce para ser um homem de bem."
Não preciso dizer o quanto ele ficou feliz, até me abraçou, coisa jamais imaginada.
Cerca de um ano depois, eu caminhava do trabalho para casa, muito cansada, contando os dias para as férias. Encontro D. numas das ruas que fazem parte do meu trajeto, vestido com uma camiseta preta , destas que trazem o  nome de bandas ou de  cantores de rock. Ele estava rodeado de amigos, o violão apoiado na perna, tocando e cantando músicas da Legião Urbana. Ao me ver, me chama e diz:
"Professora! Para um pouquinho, vou tocar uma música pra senhora."
 E começou a tocar "Há tempos". Senti um arrepio correr pela espinha, pois esta era a música preferida de um dos meus irmãos, já falecido. Na época de sua morte eu me sentira culpada, porque estava muito envolvida com o meu trabalho e a faculdade e não cuidara dele. Era viciado em drogas, uma preocupação constante para minha mãe. Eu senti um misto de alívio e culpa quando ele morreu, e desde então passei a achar lá no meu íntimo que havia falhado como irmã mais velha. Pesava em mim o remorso.
Quando D. tocou pra mim, senti como se os céus tivessem me perdoado ( ou eu a mim mesma). "Não pude cuidar de V., mas poderei sempre poder fazer alguma coisa por outras pessoas" - eu pensei. Quando ele terminou, eu o abracei, agradeci e continuei o caminho de casa, renovada. 

DOIS PAULISTANOS SENTADOS CADA UM EM SUA POLTRONA - diálogo




 (Quarta-feira à noite. Duas pessoas estão sentadas na sala de sua casa, num dos bairros da zona leste de São Paulo. Acabam de assistir ao longa Durval discos, uma produção brasileira mostrada pela tevê Cultura por ocasião dos 458 anos da cidade.)

_ O que a mãe do Durval queria era alguém pra amar...

_ Foi por isso que ela fez feijão, raspou a poupança, comprou cavalo...

_ A ironia disso é que a história é ambientada aqui em São Paulo, uma cidade apinhada de gente!

_ E de tantos carentes.

_ Se o Durval gritasse e reclamasse menos e a abraçasse mais... Se o Durval tivesse tido filhos, netos a quem ela pudesse amar...

_ O que ele fez foi parar no tempo, aferrado a uma loja cheia de vinis empoeirados!

_ Se a mãe dele tivesse percebido o vazio de sua existência, se o Durval tivesse percebido que as vidas sua e de sua mãe estavam deteriorando como os discos e o velho sobrado em que moravam....

_ É querer demais! Nesta cidade de ritmo vertiginoso quem consegue identificar os demônios que gestam?

_ Ah, mas isso é porque não sabemos nos auto-observar. Quando é que nos perguntamos: O que estou pensando? O que estou sentindo? Onde isto me leva? É esta a vida que quero? Mas ela tão simples! Ele é que devia ter notado!

- Isso que você está a exigir deles  se chama filosofar. Não há nada mais eficaz que a consciência desperta para nos preservar da loucura. Mas, ah, Deus do céu, há poucos que o saibam e menos ainda quem saiba nos ensinar a sermos testemunhas de nós mesmos.

- As crianças fazem isso! Já percebeu como perguntam sobre tudo?

_ De que adianta, se os que as acompanham não sabem conduzi-las? Vão crescendo e parando de perguntar. Os adultos querem que elas se calem e escutem, parem de importunar.

- Que lástima!

_ Neste aniversário de São Paulo quem ganhou presente foi aquele que, ao testemunhar a insanidade do outro, seja este outro real ou fictício, deu-se conta da sua.

- E de que basta identificar nossa loucura se não sabemos como nos curarmos dela?

- A leitura das obras de Nietzsche e de Platão tem me ajudado a transcender a minha. Ao menos por umas horas ou dias.

_ Não teria algo mais simples, acessível a quem não é muito dado a leituras?

- A religiosidade, a praia, a família, o amor, a filantropia, um sonho a realizar.

_ Pobre do Durval! Pior que enlouquecer é ver quem amamos ser vencido pela loucura.

- Sem dúvida. Vou pra cama. Você não vem?

- Vou depois. Quero passar em revista o meu dia.

_ Boa noite.

_ Pra você também.... Escuta, você não teria...

- Um dos livros de Platão? É pra já!

_ Não é difícil de ler, é?

_ Que nada! Você vai se deleitar, é um diálogo sobre o amor.

_ Adoro esse tema!

(E os dois saem da sala)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

leitura - poema


Se o texto é do tamanho da vida
E a vontade de ler é quase nada,
Titubeia não:
Larga!
Peça a alguém que o fisgue
Com trechos e sentidos instigantes,
Para só então retornar.
Porque ler é perguntar
Pela faca que fere
E pela erva que cura.

peregrino coração - poema


E chega sorrateira
a tristeza.
Não muito gorda
nem viril
que já sei enxergar.
E se a observo
esgueirar-se por entre meu peito e mente
ela não me pega de todo.

Eu a vejo
movendo-se nos entremeios
do meu eu, sofrido coração
até pouco entusiasta,
mensageiro da esperança.
Agora, observador calado,
atento a cada movimento
do pião.
E participa
meio que de banda,
na esquina da desilusão.

E desta posição
que não mata
nem vivifica
dispo-me de qualquer expectativa
e sigo.


Presença - poema


De amor de poesia  e de rosas
É com que faço o meu destino
Não sei fazer conta
Não tenho poupança nem nexo
Tenho por teto o céu
Por veste o Sol
E semeio caridade.
Eu dou o que tenho
o olhar a presença a fé
E aceito o que me dão:
amor poesia e rosas
E sigo distraído.

Espelho - poema


O que você vê em mim
É o que você é
O que vejo em você
É o que eu sou
Algo de bom, algo de ruim...
Vê beleza?
Também a possui...
Vê pobreza?
Também a carrega...
Sou também meu pai, que me originou
Sou também ele, em maior ou menor medida...
Sou também minha mãe
Que me concebeu
No mais profundo amor e calor do seu ventre...
Vê indisciplina?
Analisa com cuidado
Se cumpre com a agenda...
Vê minha fuga ante o obstáculo?
Quantas vezes recuou
Frente a uma dificuldade ou um não saber fazer...
Sua beleza pode não estar tão à superfície
Quanto a minha...
Mas pede que a realce
Com belos sorrisos
Trajes, cores, perfumes...
Me acha desorganizado?
Quantas vezes, em nome da ociosidade
Deixou para depois
Tarefas urgentes...
E se viu, após um tempo, assoberbado
Com o acúmulo de trabalho existente...
Vê que não gerencio bem o tempo
E que durmo demais?
Repara a que pé estão as suas realizações...
Vê graça, doçura, pureza em mim?
É porque sua alma reclama
Em ver valorizados
Os seus encantos...
Guarda e medita nisso:
Se vê é por que tem.
Sou seu espelho,
Seu reflexo na areia encantada.
Vim para servi-lo
Veio para servir-me...
Contempla sua imagem
Em mim refletida
E a partir dela
Cultiva e aprimora
Seus dons e virtudes.
Minimiza e elimina
Os vícios
E sentimentos de inferioridade.

Uma estória de amor- conto


Sendo a Ostra um molusco, frágil e indefeso ante os perigos do mar, Mãe das Águas dotou-a de uma casca lisa e rósea. Acreditando-se protegida, a Ostra decidiu que era feliz.
Mas, num fim de tarde cinzento, não se sabe por que, Grão de areia acercou-se da Ostra. Era um grãozinho falante, às vezes áspero, às vezes contraditório em seus dizeres, que saíam aos borbotões, principalmente quando entusiasmado por algum assunto.
Ostra, muito segura em sua casca e em sua experiência, fruto das longas horas passadas na observação do mar e de seus habitantes, uma vez ou outra se punha a ouvir o seu novo amigo se este, animado pelo embalo do vaivém das águas, dizia algo engraçado ou profundo.
Mas as águas nem sempre as mesmas. Manhã escura, mar encrespado, ondas rebentando na praia, o Grão, assustado e agora afeiçoado à Ostra, instalou-se sorrateiramente dentro do experiente molusco. Bem que Ostra tentou livrar-se de Grão de areia, mas não houve jeito, este decidira que Ostra seria sua morada e nela fincou bandeira sem pedir licença.
E daquele momento em diante Ostra declarou-se desafortunada porque lhe doía o roçar do áspero grão em seu corpo macio.
 - Oh! Mãe das Águas, por que este serzinho imaturo foi fazer morada justamente em meu ventre? - indagou Ostra, olhando por cima de si as águas turvas, tão perplexa e triste. Mas Mãe das Águas nada respondeu.
 E porque precisava amenizar sua dor, Ostra resolveu que tiraria algum proveito do seu sofrimento. Mas faltava-lhe o equilíbrio: ora via o Grão como um novo amigo, um companheiro de jornada, com o qual compartilharia os seus saberes ora se calava magoada, diante da atitude desonesta do intruso.
E assim viveu por muito tempo Ostra, que não mediu esforços em adaptar-se ao companheiro. Até ela sentiu um dia, que Grão não a incomodava mais.
 E Ostra deu pela falta do desconforto que a presença do companheiro costumava lhe causar.
E os olhos de Ostra se voltaram para o que lhe ia dentro, tatearando pela presença áspera de Grão para pousar numa Pérola brilhante e lisa.
 Mãe das águas sabe o que faz.

terça-feira, 3 de abril de 2012

poeminhas sem data


Tributo a Manoel de Barros I

Disfunção da alma: não vê o de lá
Não vê o de dentro
Nem é vista pelo de fora.

Glória da alma: impor guerra
Ao que vem interno
Que aleija, limita o olhar
Obstaculiza a chegança
do Sol
Por entre as pétalas dos sete véus.



Tributo a Manoel de Barros II


Ser chão, para que em mim as árvores cresçam;
Ser casa, para que em mim as famílias floresçam
Ser livro, para que em mim os poetas enlouqueçam;
Ser céu, para que em mim as estrelas apareçam;
ser mulher, para que em mim o meu Amor se aqueça;
Ser vida, para que em mim Deus rejuvenesça.
II
Ser árvore para ter gorjeios,
Ser mar para ter conchas.
III
Dona Adelina Cuê diz que o abandono protege.
Eu digo que o abandono limita.
IV
Um Sol inteiro no corpo do Mar.












Presença

De amor de poesia  e de rosas
É com que faço o meu destino
Não sei fazer conta
Não tenho poupança nem nexo
Tenho por teto o céu
Por veste o Sol
E semeio caridade.
Eu dou o que tenho
o olhar a presença a fé
E aceito o que me dão:
amor poesia e rosas
E sigo distraído.










Peregrino coração

E chega sorrateira
a tristeza.
Não muito gorda
nem viril
que já sei enxergar.
E se a observo
esgueirar-se por entre meu peito e mente
ela não me pega de todo.

Eu a vejo
movendo-se nos entremeios
do meu eu, sofrido coração
até pouco entusiasta,
mensageiro da esperança.
Agora, observador calado,
atento a cada movimento
do pião.
E participa
meio que de banda,
na esquina da desilusão.

E desta posição
que não mata
nem vivifica
dispo-me de qualquer expectativa
e sigo.




Leitura

Se o texto é do tamanho da vida
E a vontade de ler é quase nada,
Titubeia não:
Larga!
Peça a alguém que o fisgue
Com trechos e sentidos instigantes,
Para só então retornar.
Porque ler é perguntar
Pela faca que fere
E pela erva que cura.


assembleia das bruxas- poema narrativo



(Dedico Assembleia das Bruxas a todas as mulheres à frente do seu tempo.)

No alto de uma montanha
banhada pelo cheio da lua
quando o orvalho banha a noite
e o silêncio vela o sono de quem durante o dia semeou
lá,  onde nossos olhos não alcançam
chegam do céu, da terra, do mar e do ar
bruxas de todos os tipos
que se pode imaginar
novas e anciãs
humildes e ricas
rabugentas e alegres
e todas misteriosas
sob seus mantos negros
e quengos encapuzados.

Capas, mantos e vassouras
sobre rochas  e arbustos
tratem de descansar,
que as bruxas se reúnem
num círculo exemplar
é a Assembleia das Bruxas
deliberar vão agora
ouçamos, atentos, o que têm a falar.

De dentro da roda,
uma bruxa anciâ
dá um passo à frente
e a sessão iniciar.
Seu rosto enrugado
inspira respeito
em todas do clã.

"Nós, as guardiãs de tantos segredos,
as que fazem surgir o amor, a alegria
aqui nos reunimos para proclamar,
na mais pura e ousada, franca rebeldia
que todos escutem
queremos alto bradar:
O dia da bruxa começa a raiar!"

Erguendo o cajado
que firme sustenta,
o corpo encurvado
pelo peso dos anos,
a matriarca prossegue:

" Nós somos as bruxas de hoje e de outrora,
queremos tomar o que é nosso sem demora.
Por que nos confinam em céus sem luar?
No azul do firmamento, sob o sol deslizar
entre pipas e nuvens é nosso desejo.
E ai de quem ouse nos cantos murmurar:
'Tanta bruxa solta vai trazer azar!'
Gargalhar à revelia é nosso direito,
brincar entre as nuvens e formato lhes dar
e pelo infinito dos céus farrear,
sem nenhum  obstáculo."

E bailando, ensaiando seu grito guerreiro
todas as feiticeiras começam a entoar :
"O dia da bruxa já está a raiar!
Tremam os que insistem em nos torturar!"

A bruxa-mãe continua,
batendo forte o cajado no chão:
" A fogueira que surge dos nossos sussurros,
é porque desejamos os pés aquecer.
Mas há sempre quem queira nos difamar,
espalhando entre o povo:
'Elas vão nos assar!"

Enquanto retorna ao seu lugar,
a bruxa do chão faz o fogo brotar
e toda a Assembleia passa a iluminar.

Uma mão se ergue, tão pálida e fria!
Outro ser mágico quer ter a palavra;
coberta de negro, de puro cetim
a face é triste, a pele macia,
é de fina linhagem
dizem o ouro do anel.

" Sou bruxa da cidade,
minha pele é lisa e bela.
Gosto do luxo e da música;
aprecio aquarela.
O que tem os meus chifres,
os olhos vermelhos, o meu narigão
e uma voz poderosa
que é feito trovão?
Que até faz tremer
o mais intrépido varão?
De que valem o poder
o perfume, o vestido,
se até o príncipe sapo desvia o olhar
se percebe no baile, meu corpo  bailar?"

E o coro das bruxas passa a entoar:
"Nos nobres salões, nossas saias rodar,
das festas em castelos
nunca nos fartar!
Mas de nada adianta
nossa empolgação,
pois o rei sempre 'esquece' de nos convidar!"

A bruxa do campo quer se curar
da dor que a persegue da manhã ao anoitecer.
De vestido rodado e botas pontudas,
folhas perfumadas a enfeitar seus cabelos.
Suas vestes, suas carnes, têm cheiro de alecrim;
traz nas mãos um cálice que oferta à  roda,
é nectar de flores que a todas desperta!
E em silêncio, e em alerta
ouvem a bruxa:
" Minha morada é uma cabana
junto a prados e regatos.
Eu conheço a língua do vento
e da Natureza os mistérios,
seu poder sem igual.
Não me cansa atender
quem à minha porta bater,
a quem lá for buscar
um chazinho, um conselho,
a mais rara erva
sou capaz de buscar
rochedos e penhascos, atrevo-me a escalar,
entre fendas me arrisco,
na escura gruta vou depressa,
procurar pela planta que pode curar
febres, profundas feridas,
vermes no ventre, a alta pressão.
Sei também que a babosa trata queimaduras de radiação.
Mas se estou entretida
nas manhãs de inverno,
na estrada a colher ervas para cozer
e passa por mim
criança, homem ou velho,
tratam de se apressar
não me dizem sequer um olá
um bom-dia, ou até já..."

E o coro das bruxas se anima a cantar:
" Queremos nas feiras,
livres circular!
Olhos frios temerosos,
não ter que enfrentar!"

E a bruxa do campo encerra  a denúncia
"Se vou o mercado a fim de comprar
ervas variadas, cascas, sementes
mulheres e crianças começam a debandar
e o padre aflito se põe a rezar"

E num coro perfeito, elas continuam:
"Nós podemos fazer todo o solo tremer,
podemos transformar bicho, planta, lugar
e o fogo gerar da mais úmida madeira.
Tal poder, no entanto, nunca foi gratuito,
temos antiga incumbência
de servir, defender a Mãe- Natureza
do mais torpe avaro
daquele que explora, sem nenhuma vergonha
e enche seus bolsos, espalhando desertos,
sem fazer cerimônia!
Quase ninguém percebe,
somos nós quem semeia
cada planta que brota
nos solos machucados
pelos passos humanos.
Somos as operárias da amada Mãe-Terra;
guardamos com zelo os segredos antigos
do amor, da riqueza e da cura bem-vindos."

Salta de dentro da roda
a bruxa selvagem,
até entre irmãs
é preciso coragem,
pois essa bruxona não é dada à etiqueta!
Tem peles por vestes,
a mostrar suas tetas...
"Sou bruxa do mato,
gosto de correr,
nas folhas caídas,
meu corpo envolver.
Eu sou velha maga,
eu converso com as flores
eu teço com as aranhas,
e acompanho o percurso
das diligentes formigas,
dos seres humanos, jamais inimiga.
Sou eu quem celebra o retorno ao pó
dos pequeninos que partem e que ninguém tem dó.
Não importa o tamanho,
vida breve ou extensa,
não há quem não deixe
sua marca impressa.
Da vida uma lei,
ninguém pode fugir:
todos contribuem,
não há como excluir!
Pra que a vida na Terra
nunca deixe de existir!
Mas saibam, amigas, que livre não sou;
na cachoeira nem sempre posso me banhar,
se percebo ao longe o passo humano,
no mato apresso a me embrenhar.
Não digam que é cisma,
que sou bicho do mato,
já senti sobre a pele
de um humano, o olhar assustado...
E houve um dia
em que ousei desfrutar
da cascata, cristalinas águas apanhar;
porém foi bem breve
o meu raro prazer,
pois as tochas luziram
tive que correr!"

O coro das feiticeiras reivindica forte:
"Chega de exclusão, de xingamentos e de excomunhão!
Todo dia é dia de bruxa!
Queremos brincar sob o véu da chuva,
mesmo que a seus olhos pareçamos corujas!
Sob o Sol-rei sair em bandos ruidosos
e trôpegas bailar, sem em gafes pensar!"

Uma bruxa cinzenta pede agora a palavra,
ela já foi alegre,
mas agora é morta.
"Quando querem carinho,
não hesitam chamar
e nós, prestativas
nos apressamos a amar.
Juras de eterno amor
declamam sem pudor...
Mas é tudo ilusão!
Pois se avistam donzelas, lá se vão os galãs!
E nos deixam sozinhas,
sem respeito, esquecidas,
feito meias puídas.
Os corações feridos,
presas da fria dor!
A solidão quer vingar todas essas mazelas...
E há entre nós
quem trate de arquitetar
um plano perverso, porém exemplar
que possa aplacar
o que não quer passar.
Mas sempre há quem diga:
'Ora, que bruxa vil!
Veja quanta maldade!
Condenou sem piedade
um casal tão bonito!
União assim nunca se viu!
Pôs a doce menina
num repouso infinito
e confinou o marido
À espera, aflito!'"

E o coro das bruxas assanhado declama:
" Somos tão sedentas de amor, de afeto
quanto qualquer um,
rejeitamos o veto.
O coração busca amor, não importa o peito.
Da paixão, do afeto,
não abriremos mão.
E que venha a lei
o bispo, o Papa, o rei.
Não adianta proibir
é o amor que move o nosso ir."

Foi quando se ouviu um forte estrondo;
É que a bruxa-mãe quis pra si cada ouvido,
e com seu cajado interrompe o alarido.
Atenta ouvira a tudo calada
e sorvera em silêncio cada palavra.
Com seu discernimento aprendera a lição
e agora tinha pronto o mais doce sermão.

" Tendo ouvido a todas, no meu posto concentrada,
às muitas queixas ao vento lançadas...
Vejo que vivemos sempre a reclamar
e nada fizemos para afirmar
a todo o Universo como somos honradas.
Como podem saber de nossa grandeza
se em reclusão decidimos viver?
Que o nosso poder unamos agora,
a fim de que entendam,
da Vida somos Filhas.
Uma grande mágica gestemos, sem demora,
pra que grande e pequeno
possa compreender:
Somos Filhas do Cosmos,
comunhão é um dever!"

De fato surgiram muitos raios de luz,
de cada bruxinha, foi de onde saíram.
Foram transcendendo as fontes humanas
e num globo se unindo,
ganhando espaço.
E foi se expandindo, inundando o ar;
e foi se espalhando,
buscando cumprir
a tarefa excelsa
que a Assembleia exigiu.

Foi o sopro da noite
e a cadência do vento,
que viram o evento
que narro agora:

Afirmo que o gato não pôde fugir
do feitiço certeiro
que foi transgredir
as Leis da Natureza,
mas quanta beleza!
O gato é agora
mensageiro veloz,
de botas e colete, penas no chapéu,
elegante e fiel,
transformou-se em arauto
e se pôs a caminho.
Tem nas mãos pergaminho,
proclama a mensagem,
a verdade antiga
e agora sabida:
Que as Bruxas são seres com muito a dar!

O ratinho ligeiro foi todo contente
levar as boas novas a quem pôde ouvir.
O que ele pregava
em cada esquina?
Uma mensagem escrita em letras garrafais:
'Irmã Mulher, Irmão Homem,
por favor, não se engane!
A beleza é a ilusão
que o tempo devora, tolo é quem a perseguir!"

À causa das Bruxas, a águia que é livre,
também quis servir;
lançou seu crau-crau
soberano no ar.
Seu destino, saudar
esse grupo valente,
forte, competente.
Às Bruxas, do céu deu seu "Olá!"

E vendo que a nova o mundo ganhava,
a Assembleia das Bruxas pôde enfim terminar.
E foram tomando, cada uma o seu caminho,
Sabendo que tinham feito jus à existência.
Já não mais passivas frente ao desafio,
Guerreiras vibrantes ninguém viu igual.
Já não mais importava vencer ou perder,
a busca por honra as fez florescer.
E quando o Rei-Sol pôde enfim despertar,
viu que havia com Ele outras luzes a brilhar.
E aos quatro cantos se pôde notar
Bruxas iluminadas pela coragem de existir,
que se irmanavam na voz a repetir:
"O Dia da Bruxa acabou de raiar!
Vejam que o Rei-Sol vem nos coroar!
De hoje em diante, cabeças erguidas,
também temos nosso quinhão nesta vida!"