Ele era o terror
da sala, uma classe de Jovens e Adultos. Tinha dezesseis anos e
era recém-chegado do Nordeste, não me recordo de que estado. Pernambuco
talvez. Nós, professoras e pseudopsicólogas de plantão, inferíamos que ele
tinha uma profunda mágoa da mãe. Esta, cansada das dores de cabeça que ele
havia lhe proporcionado, despachara-o para a irmã aqui em São Paulo, a
única pessoa da família a quem ele ouvia. Tratei logo de pegar o número do
celular dela e quando ele começava a fazer desenhos obscenos para mostrar
às senhoras evangélicas ou a provocar o Fernando - rapaz brilhante, mas que vez
por outra comparecia às aulas embriagado, eu já avisava:
"Comporte-se ou
avisarei a sua irmã."
Nunca gostei de
ameaças, sempre acreditei ser possível criar laços ou pelo menos
estabelecer um clima de respeito entre eu e meus estudantes, mas as
tentativas de aproximação com D. fracassaram todas. E tanto eu quanto
as demais professoras não tínhamos a graça de uma noite tranquila em sala de aula,
toda noite era uma discussão, um tumulto.
Até que um dia D.
se transformou. Naquele ano, desenvolvíamos um projeto denominado
"Cultura Popular" no ensino noturno da escola. Com ele, buscávamos
não só romper com o velho conceito de folclore, mas também tornar o ensino e a
aprendizagem mais dinâmicos e prazerosos, porque significativos, oriundos
das vivências dos estudantes. Muitos deles vinham do Nordeste e possuíam muitos
saberes que pretendíamos não só valorizar, como inserir no currículo escolar, explicitar
neles o conhecimento embutido e tantas vezes desconsiderado ou esquecido.
A oitava série havia
decidido dramatizar os causos e contos resgatados nas aulas de Língua
Portuguesa e um dos rapazes ficou de tocar violão em uma das dramatizações.
Como ele não tinha um, eu levei o meu, que até aquele momento era apenas um
objeto de decoração do meu quarto. Tão bonito em sua capa de
couro, testemunha do meu fracasso musical ( comprara-o no ano anterior,
resolvida a aprender a tocar violão, mas desisti, após duas aulas: achava-o
grande, complicado para segurar e faltava-me a agilidade no dedilhar...).
Cheguei na escola com o violão e minha primeira aula era na classe de D., o
complicado. Quando me viu com o violão, aproximou-se para conversar comigo, o
que nunca acontecera antes. Perguntou se eu sabia tocar. Falei de minha
tentativa frustrada. Devolvi-lhe a pergunta e ele foi me dizendo que estava
aprendendo de olhar: quando um amigo começava a tocar, ele prestava o máximo de
atenção para aprender. Como apanhara nas aulas de violão, duvidei: " Você
aprende a tocar violão só de olhar?" e ele: " De vez em quando ele me
deixa tocar." Pus o instrumento em suas mãos e de fato ele tocou algo que
me pareceu harmonioso. O sinal tocou, hora de eu ir para outra sala e ele
pediu para me acompanhar. Disse que sim, surpresa com esse novo D. que se
revelava diante de mim. Na outra sala, a oitava série das
dramatizações, ele grudou no outro rapaz, os dois começaram a
conversar e a tocar violão. Teve quem se irritasse com a som e as
conversas, mas eu não podia interromper aquele momento: D. estava
conversando amigavelmente sobre música! Combinamos que poderiam
continuar as conversas e o dedilhar do violão no corredor e mesmo
durante o jantar os três não se largaram. Só pararam de tocar quando uma das
cordas do violão se rompeu.
D. se prontificou a
trocar a corda. Perguntei-lhe do valor de uma nova, para lhe dar o
dinheiro necessário e ele disse que era baratinha, que ele mesmo
compraria. Consenti, o queixo no chão. No dia seguinte, ele trouxe o
violão, a corda novinha. Olhei para ele segurando aquele violão e
pensei que se aceitasse o instrumento, este ficaria abandonado sobre a
poltrona do quarto, mudo e frustrado. Enquanto que se permanecesse com o rapaz,
quem sabe... Propus-lhe um acordo:"D., em casa o violão ficaria
parado, já que ninguém toca e eu ando sem tempo e vontade de retornar às aulas.
O que acha de ir treinando nele até o fim do ano?"
Ele aceitou, todo
sorridente. Daquele dia em diante, nossa relação melhorou consideravelmente.
Não digo que ele tenha se transformado num anjo, ainda havia uma discussão, um
conflito aqui e ali, mas a frequência e a intensidade deles diminuíram.
Primeira semana de
dezembro, D. entrou na sala com o violão, conforme combináramos. (Era um garoto
de palavra). Retirou-o da capa para que eu visse que o violão estava
em bom estado, que cuidara dele. Olhei para o violão e não o
reconheci. Repleto de adesivos, tinha as marcas de um adolescente.
Já não me pertencia mais.
"Quero propor-lhe
algo. Fique com o violão, mas em troca terá que fazer algo
muito importante para mim."
" O que?" -
ele me perguntou, no rosto uma mistura de alegria e apreensão.
"Quero que se
esforce para ser um homem de bem."
Não preciso dizer o
quanto ele ficou feliz, até me abraçou, coisa jamais imaginada.
Cerca de um ano depois,
eu caminhava do trabalho para casa, muito cansada, contando os dias para as
férias. Encontro D. numas das ruas que fazem parte do meu trajeto, vestido
com uma camiseta preta , destas que trazem o nome de bandas ou de
cantores de rock. Ele estava rodeado de amigos, o violão apoiado na
perna, tocando e cantando músicas da Legião Urbana. Ao me ver, me chama e
diz:
"Professora! Para
um pouquinho, vou tocar uma música pra senhora."
E começou a tocar
"Há tempos". Senti um arrepio correr pela espinha, pois esta era
a música preferida de um dos meus irmãos, já falecido. Na época de sua
morte eu me sentira culpada, porque estava muito envolvida com o meu trabalho e
a faculdade e não cuidara dele. Era viciado em drogas, uma preocupação
constante para minha mãe. Eu senti um misto de alívio e culpa quando ele
morreu, e desde então passei a achar lá no meu íntimo que havia
falhado como irmã mais velha. Pesava em mim o remorso.
Quando D. tocou pra
mim, senti como se os céus tivessem me perdoado ( ou eu a mim mesma).
"Não pude cuidar de V., mas poderei sempre poder fazer alguma coisa
por outras pessoas" - eu pensei. Quando ele terminou, eu o abracei,
agradeci e continuei o caminho de casa, renovada.
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