O pai tinha um jeito de
fazer as coisas que o enervava. Em pleno século vinte e um, em que todos
buscavam fazer e ganhar mais em menos tempo, o velho persistia naqueles
modos contemplativos de ser: mais ouvia do que falava, demorava-se em observar
as cores e os cheiros do prato durante as refeições; parava no meio da
rua pra ver a criança no colo do jovem pai apressado, a caminho da
creche; acariciava uma florzinha desigual no vaso de flores
compradas na feira de domingo; e sempre ria das brincadeiras
dos gatos já adultos. Eram esses os eventos que o despertavam das conversas
internas e para eles, tinha o mesmo comentário:
" Que bonito!
Por não ter
muita paciência com aquele jeito velho de ser, evitava ir vê-lo,
apesar dos conselhos da mulher.
"Vá ver seu
pai", ela dizia, "nunca se sabe quanto tempo lhe resta"
Naquele dia ele foi.
Não pela insistência da esposa, mas pelo desânimo que sentia. Estava cansado.
48 anos. E o que obtivera? Carreira, casa, respeito, uma companheira,
amigos...menos um filho. Aquele antigo sonho, ele ainda não conseguira
realizar. Por que ele, que já tinha problemas de fertilidade, fora amar alguém
que também os tinha? Mistérios da vida que ele não saberia explicar. Só sabia
que era com ela que queria envelhecer. Mas o desejo do filho
insistia .
Ele e a mulher já
haviam gastado um bom dinheiro e o tempo corria contra ela. Mais um ano e
meio e não mais poderiam recorrer à inseminação
artificial. Determinada, ela se submetera a exames, regimes,
medicamentos. Por aqueles dias, a tensão instalou-se entre o casal e
agora ele estava ali, observando o pai na cozinha, que absorto, olhava a água
que caía sobre a xícara que lavava na pia.
"Por que comigo?
Por que não me concederam ao menos um, quando tantos nascem de pais sem a
mínima condição de criá-los dignamente? Devemos continuar tentando? Ou
desistimos dos médicos e partimos para a adoção?"
O Pai fechou a
torneira, pôs a xícara delicadamente no escorredor de pratos e procurou os
olhos do filho para dizer:
" Não lutes"
A testa do filho
franziu.
" Não entendo o
que quer me dizer..."
" Observa teus
pensamentos, tuas opções, tuas escolhas. Paira sobre tudo o que tens
de passar. Aquieta-te e entenderás tudo. Só assim compreenderás a
razão de ser das coisas e saberás então o que tens
de fazer."- e o velho enxugou as mãos enrugadas num pano
branco.
Aritmética
O professor
já havia iniciado a aula e foi por isso que o garoto entrou de
mansinho, evitando os cumprimentos ruidosos que costumava trocar entre os
amigos. Foi sentando numa carteira que sobrara no cantinho que era o seu
preferido da sala: o fundão. Dali podia ver tudo e todos. Ali, se a aula
estivesse monótona ,podia debruçar sobre a mochila sem que os
professores notassem. Era ali o melhor lugar pra saber quem
ficou com quem, ouvir música pelo fone de ouvido estrategicamente escondido sob
a camiseta ou simplesmente rir das bobagens ditas pelos amigos. Mas o
fundão estava diferente naquele dia. Todos muitos quietos: a Maíra, a
Hellen, o Daniel, o Luan, o Valter. Até o Porco, que era o mais elétrico da
turma estava prestando atenção no que o professor dizia.
" Você
impediria um atacante, aquele apto a levar seu time de futebol à conquista
do título, proibiria-o de jogar devido a cor de sua pele? Deixaria de
apoiá-lo por causa de sua cor? Pois é isso o que fazem com os negros. São
fortes, são guerreiros. Mas devido a cor da pele são impedidos de
vencer."
"Mas professor, a
maioria dos craques de futebol são negros!" - disse Babi, que
mais uma vez não entendera o simbolismo da coisa toda, na
sua costumeira mania de discordar. Os professores mais democráticos
da escola nos incentivavam a questionar, mas a gente achava que
isso era maluquice ou, na pior das hipóteses, suicídio. Quem
se atreveria a expôr sua ignorância?
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