terça-feira, 3 de abril de 2012

desejos


O pai tinha um jeito de fazer as coisas que o enervava. Em pleno século vinte e um, em que todos buscavam  fazer e ganhar mais em menos tempo, o velho persistia naqueles modos contemplativos de ser: mais ouvia do que falava, demorava-se em observar as cores e os cheiros do  prato durante as refeições; parava no meio da rua pra ver a criança no colo do jovem pai apressado, a caminho da creche; acariciava uma florzinha desigual no vaso de flores compradas na feira de domingo; e sempre ria  das brincadeiras dos gatos já adultos. Eram esses os eventos que o despertavam das conversas internas e para eles, tinha o mesmo comentário:
" Que bonito!
 Por não ter muita paciência com aquele jeito velho de ser, evitava ir vê-lo, apesar dos conselhos da mulher.
 "Vá ver seu pai", ela dizia, "nunca se sabe quanto tempo lhe resta"
Naquele dia ele foi. Não pela insistência da esposa, mas pelo desânimo que sentia. Estava cansado. 48 anos. E o que obtivera? Carreira, casa, respeito, uma companheira, amigos...menos um filho. Aquele antigo sonho, ele ainda não conseguira realizar. Por que ele, que já tinha problemas de fertilidade, fora amar alguém que também os tinha? Mistérios da vida que ele não saberia explicar. Só sabia que era com ela que queria envelhecer. Mas o desejo do filho insistia .
Ele e a mulher já haviam gastado um bom dinheiro e o tempo corria contra ela. Mais um ano e meio e não mais poderiam recorrer à inseminação artificial.  Determinada,  ela se submetera a exames, regimes, medicamentos. Por aqueles dias, a tensão  instalou-se entre o casal e agora ele estava ali, observando o pai na cozinha, que absorto, olhava a água que caía sobre a xícara que lavava na pia.
"Por que comigo? Por que não me concederam ao menos um, quando tantos nascem de pais sem a mínima condição de criá-los dignamente? Devemos continuar tentando? Ou desistimos dos médicos e partimos para a adoção?"
O Pai fechou a torneira, pôs a xícara delicadamente no escorredor de pratos e procurou os olhos do filho para dizer:
" Não lutes"
A testa do filho franziu. 
" Não entendo o que quer me dizer..."
" Observa teus pensamentos, tuas opções, tuas escolhas. Paira sobre tudo o que tens de passar. Aquieta-te e entenderás tudo. Só assim compreenderás a razão de ser das coisas e saberás então o que tens de fazer."- e o velho enxugou as mãos enrugadas num pano branco.

Aritmética
O professor já havia iniciado a aula e foi por isso que o  garoto entrou de mansinho, evitando os cumprimentos ruidosos que costumava trocar entre os amigos. Foi sentando numa carteira que sobrara no cantinho que era o seu preferido da sala: o fundão. Dali podia ver tudo e todos. Ali, se a aula estivesse monótona ,podia debruçar sobre a mochila sem que os professores notassem.  Era ali o melhor lugar pra saber quem ficou com quem, ouvir música pelo fone de ouvido estrategicamente escondido sob a camiseta ou simplesmente rir das bobagens ditas pelos amigos. Mas o fundão estava diferente naquele dia. Todos muitos quietos: a Maíra, a Hellen, o Daniel, o Luan, o Valter. Até o Porco, que era o mais elétrico da turma estava prestando atenção no que o professor dizia.  
" Você impediria um atacante, aquele apto a levar seu time de futebol à conquista do título, proibiria-o de jogar devido a cor de sua pele? Deixaria de apoiá-lo por causa de sua cor? Pois é isso o que fazem com os negros. São fortes, são guerreiros. Mas devido a  cor da pele são impedidos de vencer."
"Mas professor, a maioria dos craques de futebol são negros!" - disse Babi,  que mais uma vez não entendera o simbolismo da coisa toda, na  sua costumeira mania de discordar. Os professores mais democráticos da escola nos incentivavam a questionar, mas a  gente achava que isso era  maluquice  ou, na pior das hipóteses, suicídio. Quem se atreveria a expôr sua ignorância?


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