A lotação começa a se
mover, mas sua partida não é nada tranquila. O veículo sai aos solavancos, o
motorista parece não saber da dificuldade que é andar para trás numa van em
movimento, dotada de um corredorzinho estreito. Olhos molhados de sono, Daniel,
vem logo atrás do pai. Se atrapalha na catraca, pede desculpas à
senhora perfumada ( ainda bem que não comera nada antes de sair, ele
pensa) . Ela o encara, ressentida por ele ter desfiado a meia fina
dela, quando procurava um pedaço de chão em que colocar o
pé. Ele e o pai forçam a passagem em direção à porta
do fundo do veículo. O jovem vai de cabeça baixa, evitando
novos olhares enfezados.
Faixas
laranjas colorem as beiradas do céu daquela manhã, e ninguém
parece notar. Há os que cochilam, há os que estão ocupados em
olhar para a frente ou pela janela sem que nada vejam. A viagem é curta, o
pai mora perto do local de trabalho. Desembrcam. O rapaz respira aliviado.
A rua deserta
ainda, pelo cedo do dia; só os passarinhos procurando comida aqui e ali. O
rapaz conta cinco deles, ciscando o chão. Os bem-te-vis cantam das árvores e um
beija-flor namora as frutas de uma banca 24 horas. Daniel se agrada das cores
do bichinho:preto e azul escuro metálico. O homem não nota os
pássaros, mas sente o silêncio do filho. Para que o garoto se anime,
começa a contar as piadas que ouvira no dia anterior, contadas pelos colegas de
ofício. Refere-se a cada um pelo apelido: o Porco, o Cheiroso, o Mineiro,
o Orelha. Ao rapaz, parece-lhe que da profissão do pai, tudo o que
lhe restava era camaradagem no serviço, uma seguradora. Ele não
ousava indagar, mas desconfiava da sinceridade daquele
riso, que lhe soava triste.
O Pai já tivera a sua
oficina. Ia às casas das freguesas consertar máquinas de lavar, secadoras,
tanquinhos, fogões. Tiveram até carro. Tempo bom aquele. Mas a clientela foi
enxugando, pois as seguradoras passaram a oferecer de tudo, inclusive
manutenção de eletrodomésticos. O Pai teve que trocar o carro pela bicicleta.
Passou a sair todos os dias com sua caixa de ferramentas, gritando os seus
serviços pelos bairros vizinhos. Porém, a inconstância dos ganhos- tinha semana
em que o máximo que conseguia era trocar o motor de um tanquinho- e o jeito
silencioso da Mãe, fizeram-no render-se aos novos tempos. Agora tinha salário
fixo e carteira assinada, além de não precisar mais sair à caça de freguesia.
Isso caberia aos agentes de seguros dali por diante. Aos domingos,
para aumentar a renda, fazia uns consertos quando chamado.
- Que cara é essa,
Filho? - pergunta o homem- Não tá gostando de vir comigo, aprender a minha
profissão? Sei que não é bem o que você sonha, mas é melhor que nada, enquanto
existir gente, vão precisar de quem saiba consertar as máquinas. Você terá como
garantir o seu pão, o que não é pouca coisa.
O garoto olha para o
pai, surpreso. Não era a primeira vez que acompanhava o pai no serviço, mas
para ele tais momentos não passavam de uma inserção num dos
muitos setores reservados aos adultos. Agora o pai vinha com aquela
história, a dele aprender sua profissão. " Não é bem o que você
sonha." Mas qual era mesmo o seu sonho? Nunca planejara o futuro, já
que não o ensinaram a fazer isso. A sua existência ainda não lhe
pertencia, eram os adultos- de casa e da escola- quem
a decidiam. Só decidia as cabulações de aula, as brincadeiras de
rua, de que menina se aproximar, de que galera participar. Podia
escolher jogos de videogame ou roupas e calçados, desde que
coubessem no orçamento da casa. Parecia-lhe que a única área em que podia
exercer sua vontade era a escolar: fazer ou não fazer o trabalho de geografia? Prestar
atenção ou não às explicações monótonas e incompreensiveis dos
professores? Não, não, enganara-se; pensando bem, nem sobre
esse setor podia legislar. Em se tratando das notas escolares,
não tinha o menor controle;quando achava que sabia da matéria, levava um choque
ao receber o resultado das provas; quando tinha certeza que fora mal numa
delas, porque chutara as respostas, era surpreendido por uma nota
boa. Acostumara-se a deixar o futuro nas mãos do acaso, a viver o presente. "Na
hora a gente vê", costumava dizer, porque não se sentia confiante
para decidir o seu futuro. E assim, ia adiando o encontro com o seu
amanhã; armara-se do discurso que ouvia desde de menino: estudar para ser
alguém na vida. Quanto ao que estudar e o que ser, não tinha a menor idéia.
Quando apertado por um amigo ou adulto, citava uma ou outra profissão que
admirava ou que remunerava bem, mas que ignorava completamente.
Daniel foi
ouvindo seus pensamentos e ficando com raiva do pai e dos professores.
Diziam que ele tinha que estudar para trabalhar, mas não o ajudavam a decidir
sobre o que fazer. E vê-los reclamando do salário, das condições de
trabalho e do transporte coletivo só o faziam temer ainda mais
a vida adulta. E agora vinha o pai falar em sonho. Que
sonho? Como podia o Pai saber do seu sonho se nem ele sabia? Garantir o
pão...era só isso a vida? Vontade de mais, mas o quê?
Pai e filho entram no
prédio de uma grande seguradora. O garoto observa os homens:
alguns pregam seus crachas de identificação nos bolsos das camisas. Outros
estão no balcão, recebendo do chefe os pedidos do dia. Um ou
outro confere as ferramentas na caixa. Dizem gracejos, riem,
combinam o café na padaria da esquina. O pai apresenta o filho aos
amigos, que elogiam os poucos pelos do rosto do menino.
- Vem, Filho, vamos
tomar café, você não comeu nada hoje e o pão de queijo da padaria da esquina é
uma maravilha.
Daniel acompanha
o homem que é o seu pai. Vai pensativo. Não deseja a vida que o homem à
sua frente leva, mas não consegue apresentar uma alternativa. E
vai, como quem não tem pra onde ir, nem pra onde voltar. Está numa encruzilhada
cujos caminhos o paralisam.
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