terça-feira, 3 de abril de 2012

das escolhas inconscientes - conto


Ele sonhava em ter um carro. Trabalhava numa fábrica de automóveis e via todo o processo de produção de um carro; a montagem do motor, da carroceria, da pintura, do estofamento. Cada carro pronto, cheirando a novo, que ele via ser levado ao pátio da fábrica e depois transferidos às grandes carretas,  a fim de serem expostos nas concessionárias de autos, era mais uma acha de lenha  a alimentar o fogo do desejo em seu coração.
Como só ele trabalhava em casa e tendo filhos para criar, começou a fazer horas extras, para ganhar mais. Chegava em casa tarde, as crianças já dormindo, tinham como sonhado o beijo noturno do pai. Por estar cansado, não tinha ânimo para conversar , tampouco abraçá-la. Comia rapidamente e ia dormir. A esposa reclamava a sua companhia, há quanto tempo não conversavam , brincavam, namoravam. E as crianças? Quando fora a última vez que assistira um desenho animado com o caçula ou saído para tomar um sorvete com as meninas? Alertava-o da falta que fazia às crianças. O homem retrucava às queixas da mulher. Que ela tivesse paciência por um pouco mais de tempo. Que pensasse no conforto que teriam.
Após alguns meses, ele chegou em casa com o carro dos seus sonhos. Dera uma boa entrada ( horas extras, férias, 13º) e parcelou o restante do valor do veículo em 36 suaves  prestações.
As crianças fizeram festa. Gritavam alegres enquanto corriam ao redor do carro, seguidas pelo cachorro, que, como não poderia deixar de ser, fez xixi numa das rodas traseiras ao primeiro descuido da família. Apesar da travessura, também participou da primeira vez que deram uma volta no quarteirão.
A mulher acreditou que novamente todos à mesa durante o jantar, as brincadeiras de pai e filhos antes de dormir, o namoro tarde da noite, os passeios aos domingos.
Mas não. O marido continuava a fazer horas extras, porque o carro reclamava cuidados. E aos domingos, dedicava-se ao carro - lavar, secar e encerá-lo pela manhã - aos amigos e à cerveja.. Quando ouvia da mulher a queixa já conhecida, argumentava cansaço ou falta de tempo.
Quando percebeu que pedia em vão pela companhia do marido, a mulher começou a planejar passeios dominicais com as crianças. Deixava pronto o almoço do marido. Para ela e as crianças, preparava sanduíches, bolos, tortas, sucos. Conheceram todos os parques públicos da cidade. Os meninos, levavam pipas, bola; as meninas, bonecas, gibis, brinquedos de casinha. Quando cansados dos brinquedos, rolavam na grama, subiam em árvores, caçavam besouros. A mãe lia sob a copa das árvores.
Foi num desses passeios, que mãe e filhos conheceram um homem-criança. Empinava pipas com os meninos; os pés descalços na grama fria. Fingia comer a comidinha que as pequenas preparavam em suas panelinhas e não se importava em vigiar o sono das bonecas. Sabia da vida dos autores dos livros que a mãe lia. E  passaram a se encontrar todos os domingos, sob as mesmas árvores.
Num domingo de sol, os filhos maiores perceberam que o amigo e a mãe pouco conversaram, embora os olhos de um postos no outro. Ao fim da tarde, não houve despedida, amigo, mulher e filhos seguiram pelo mesmo caminho.
Na manhã do mesmo dia, absorto com a limpeza do carro, o pai não dera pela falta do cachorro. E à noite, quando o telefone tocou na sala, ele não ouviu, já que a música que ouvia dentro do carro estava em alto volume.

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